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Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG

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Em Tese, Belo Horizonte, v. 10, p.164-171, <strong>de</strong>z.2006<br />

“novo”, como afirma Arruda Filho (1999) em uma resenha crítica sobre Resumo <strong>de</strong><br />

Ana:<br />

[...] tu<strong>do</strong> é veloz. Fatos e eventos se suce<strong>de</strong>m entre a vertigem e a insensatez. O novo<br />

(ou aquilo que, travesti<strong>do</strong> em rótulo e imagem, consi<strong>de</strong>ramos como "o" novo) parece ser<br />

apenas um pretexto para mudança constante. Não sobra muito tempo para quem quer<br />

fazer alguma reflexão sobre as diferenças que separam o transitório <strong>do</strong> permanente, o<br />

importante <strong>do</strong> supérfluo.<br />

Resumo <strong>de</strong> Ana é um romance que apreen<strong>de</strong> a realida<strong>de</strong> e tem a memória como<br />

elemento primordial <strong>de</strong> sua constituição, mesmo consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que<br />

ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passa<strong>do</strong>s, a memória relata não os<br />

próprios acontecimentos que já <strong>de</strong>correram mas sim palavras concebidas pelas imagens<br />

daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos senti<strong>do</strong>s, gravaram no espírito uma espécie<br />

<strong>de</strong> vestígio. (AGOSTINHO, 2001, p. 282.)<br />

Os autores, na contemporaneida<strong>de</strong>, não têm o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> consagrar sua imagem<br />

autoral, optan<strong>do</strong> também pela <strong>de</strong>smistificação <strong>do</strong> herói 3 . O romance contemporâneo<br />

apresenta características <strong>de</strong> outras épocas. Há, nele, uma explicitação <strong>do</strong> ato ficcional,<br />

com larga utilização da intertextualida<strong>de</strong>, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> que só conhecemos o passa<strong>do</strong><br />

por meio <strong>de</strong> seus vestígios textualiza<strong>do</strong>s. 4 Os <strong>do</strong>is contos que compõem Resumo <strong>de</strong><br />

Ana travam um duelo muito interessante contra aquilo que se po<strong>de</strong> chamar "a liturgia<br />

<strong>do</strong> <strong>de</strong>scartável", conforme apresenta Arruda Filho (1999):<br />

Carone, com uma proposta audaciosa, talvez a mais importante <strong>de</strong> toda a sua produção<br />

literária, consegue transformar a banalida<strong>de</strong> da vida em literatura. Em outras palavras:<br />

ele quer mostrar, ao seu mo<strong>do</strong>, o quanto é precária a memória, na medida em que<br />

seleciona alguns fragmentos da biografia <strong>de</strong> uma pessoa, ou <strong>de</strong> uma personagem, e os<br />

anula através <strong>do</strong> relato "oficial"—essa tragédia mentirosa, cheia <strong>de</strong> "grandiosida<strong>de</strong>s<br />

épicas", em que transformamos as nossas vidas.<br />

Na ótica ficcional <strong>de</strong> Carone, os pequenos <strong>de</strong>sastres da vida, que em<br />

circunstâncias ‘normais’ estariam fada<strong>do</strong>s ao esquecimento — por sua notória<br />

‘<strong>de</strong>simportância’ —, aqui fazem parte <strong>de</strong> uma complexa história, não apenas <strong>de</strong> Ana e<br />

Ciro, mas — num universalismo inquieta<strong>do</strong>r, <strong>de</strong>sconfortável — <strong>de</strong> muitas outras ‘anas’<br />

e ‘ciros’, da “eterna <strong>do</strong>r <strong>de</strong> viver” <strong>do</strong>s seres humanos mortais e temporais, em<br />

diferentes lugares.<br />

A primeira parte, “Resumo <strong>de</strong> Ana” 5 , subdivi<strong>de</strong>-se em <strong>de</strong>z partes, sem títulos. O<br />

relato é intermedia<strong>do</strong> por metatextos, nos quais o narra<strong>do</strong>r evi<strong>de</strong>ncia a angústia — e,<br />

às vezes, fascínio — <strong>de</strong> Lazinha em relatar a história <strong>do</strong>s parentes:<br />

Minha mãe hesitava à medida que o relato tomava corpo diante <strong>de</strong> mim: as pausas e as<br />

digressões se tornavam freqüentes e a disposição para recompor as falhas com novas<br />

reminiscências se acentuava. Embora difícil <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir, o gesto não era <strong>de</strong>libera<strong>do</strong>,<br />

parecen<strong>do</strong> refletir a forma <strong>de</strong> compromisso entre o fascínio <strong>de</strong> narrar e o me<strong>do</strong> <strong>de</strong> tratar<br />

as confidências <strong>de</strong> Ana como quem fere o <strong>de</strong>coro familiar. Mas ela venceu a dificulda<strong>de</strong> e<br />

passou à <strong>de</strong>rrocada... (CARONE, 2001, p. 39)<br />

“Ciro” se subdivi<strong>de</strong> em catorze partes, também sem títulos. Nos <strong>do</strong>is contos, o<br />

corpo da escrita opera com a existência <strong>de</strong> várias vozes 6 — ou “entida<strong>de</strong>s” 7 : a voz <strong>de</strong><br />

Ana, que confi<strong>de</strong>ncia sua história a Lazinha, sua filha mais velha; a voz <strong>de</strong> Lazinha,<br />

que é também personagem da história, que relata o passa<strong>do</strong> ao seu filho; a voz <strong>de</strong><br />

Anita, que se tornara companheira <strong>de</strong> Ciro até o fim da vida 8 ; e a voz <strong>do</strong> próprio<br />

narra<strong>do</strong>r, neto <strong>de</strong> Ana, filho <strong>de</strong> Lazinha (cujo nome não figura na narrativa) — que é,<br />

antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, o leitor <strong>de</strong> um texto narra<strong>do</strong>, que recolhe as memórias e palavras <strong>de</strong><br />

Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit<br />

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