03.07.2013 Views

Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG

Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG

Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Em Tese, Belo Horizonte, v. 10, p. 10-15, <strong>de</strong>z. 2006<br />

Brasil repleta <strong>de</strong> alterações teóricas em espaços curtos <strong>de</strong> tempo. Aqui, mais uma vez,<br />

Macha<strong>do</strong> <strong>de</strong> Assis mescla o transitório, o efêmero <strong>do</strong>s aspectos sociais <strong>de</strong> seu tempo<br />

aos valores humanos universais na figura <strong>de</strong> Brás Cubas, imortalizan<strong>do</strong>-o pela arte.<br />

A terceira possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> tempo que abordamos em Memórias póstumas <strong>de</strong><br />

Brás Cubas é o recurso utiliza<strong>do</strong> por Brás para burlar o leitor. O caráter elíptico e<br />

fragmentário <strong>do</strong> texto machadiano, antes visto como <strong>de</strong>feito narrativo, foi percebi<strong>do</strong><br />

por Antonio Candi<strong>do</strong> como um aspecto inova<strong>do</strong>r <strong>do</strong> romance.<br />

O gênero, porém, começava a construir um novo público leitor na Europa,<br />

constituí<strong>do</strong> basicamente por mulheres ou homens que não trabalhavam, mas com<br />

pouca instrução para acompanhar narrativas mais sofisticadas. No Brasil, o romance é<br />

introduzi<strong>do</strong> pelo Romantismo, solicitan<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>res que levem o leitor “pela mão”<br />

a<strong>de</strong>ntro da narrativa, já que o público não era habitua<strong>do</strong> a tal tipo <strong>de</strong> leitura (LAJOLO,<br />

2004, p. 141). Wolfang Iser analisa a obra literária partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> pressuposto <strong>de</strong> que só<br />

há leitura efetiva quan<strong>do</strong> o leitor preenche as lacunas <strong>do</strong> texto. As projeções <strong>do</strong> próprio<br />

leitor, no entanto, <strong>de</strong>vem se alterar para preencher tais lacunas, exigin<strong>do</strong> uma<br />

“<strong>de</strong>sautomatização” <strong>de</strong> quem lê.<br />

Iser analisa como os vazios <strong>do</strong> texto aparecem em três tipos <strong>de</strong> narrativa. No<br />

romance <strong>de</strong> tese os vazios são praticamente ausentes, já que o texto é utiliza<strong>do</strong> para<br />

veicular <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong>-se evitar, então, a ambigüida<strong>de</strong>. No<br />

romance-folhetim os vazios são cortes propositais nos momentos <strong>de</strong> tensão da<br />

narrativa para forçar o público leitor a adquirir o próximo capítulo, ou seja, uma<br />

estratégia puramente comercial. No romance haveria, segun<strong>do</strong> o teórico, espaço para<br />

lacunas propositais a serem preenchidas com projeções <strong>do</strong> leitor, uma vez que o tipo<br />

<strong>de</strong> narrativa é livre para se construir como arte, sem função <strong>de</strong> direcionar a<br />

compreensão <strong>do</strong> leitor ou <strong>de</strong> manipulá-lo com a omissão <strong>do</strong>s fatos narra<strong>do</strong>s (ISER,<br />

1979, p. 107-118). Apesar <strong>de</strong> Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas ter si<strong>do</strong> publicada<br />

em folhetins, o escritor não trata a obra como mero comércio. O interesse artístico —<br />

e, como vimos, <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong> — se mantém mesmo quan<strong>do</strong> os capítulos são<br />

compila<strong>do</strong>s em livro.<br />

Sen<strong>do</strong> o romance um gênero novo no Brasil, ainda conquistan<strong>do</strong> um público<br />

leitor, a narrativa fluente, contínua e sem interrupções que pu<strong>de</strong>ssem perturbar a<br />

compreensão <strong>do</strong> texto seria i<strong>de</strong>al. Macha<strong>do</strong> <strong>de</strong> Assis, no entanto, quebra essa<br />

expectativa <strong>do</strong> leitor, subverten<strong>do</strong> a or<strong>de</strong>m nas memórias <strong>de</strong> Brás Cubas, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

texto literário um <strong>de</strong>safio ao leitor pelo excesso <strong>de</strong> lacunas, que se apresentam na obra<br />

tanto nos vazios <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s entre a publicação <strong>do</strong>s folhetins como nos vazios <strong>do</strong> próprio<br />

enre<strong>do</strong>, falciforme. O narra<strong>do</strong>r cria<strong>do</strong> por Macha<strong>do</strong> em Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás<br />

Cubas difere daquele a que o leitor brasileiro estava acostuma<strong>do</strong>. Brás Cubas se recusa<br />

a facilitar os caminhos que levam o leitor para <strong>de</strong>ntro da obra literária.<br />

Reconstruir a flecha <strong>do</strong> tempo que constitui a história <strong>de</strong> Brás Cubas, então, é<br />

trabalho <strong>do</strong> leitor. Rever os próprios pontos <strong>de</strong> vista para captar o mun<strong>do</strong> adverso <strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong> parte a narrativa <strong>de</strong> Brás Cubas também é trabalho <strong>do</strong> leitor. Compreen<strong>de</strong>r que,<br />

na morte, a flecha <strong>do</strong> tempo tem <strong>do</strong>is gumes e po<strong>de</strong> ser maleável, como Brás a dispõe<br />

nas suas memórias, é, mais uma vez, trabalho <strong>do</strong> leitor. E ainda, perceber que essa<br />

mesma flecha que coor<strong>de</strong>na o tempo nas Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, sen<strong>do</strong><br />

maleável, não é linear, e sim espiral, é trabalho <strong>do</strong> leitor.<br />

Ao <strong>de</strong>sabafar a um crítico, no capítulo CXXXVIII: “Valha-me Deus! é preciso<br />

explicar tu<strong>do</strong>” (ASSIS, 1981, p. 131), Brás <strong>de</strong>ixa a dica a seu futuro leitor para que<br />

este busque compreen<strong>de</strong>r a obra sem esperar muitas explicações <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. Assim,<br />

os vazios excessivos da obra machadiana po<strong>de</strong>m ser completa<strong>do</strong>s com as impressões,<br />

Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit<br />

13

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!