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Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG

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Em Tese, Belo Horizonte, v. 10, p. 67-73, <strong>de</strong>z. 2006<br />

trilhar um caminho muito próximo <strong>do</strong>s Evangelhos, nos quais o fiel da balança pen<strong>de</strong><br />

mais para o aspecto divino. Miles (2002, p. 307) comenta que, em termos literários,<br />

Jesus “<strong>de</strong>ve ser sempre, ao mesmo tempo, divino e humano”. Portanto, não<br />

surpreen<strong>de</strong> que o Jesus <strong>do</strong> romance, quase <strong>do</strong>is mil anos após os acontecimentos e<br />

agora somente como Jesus divino, termine sua narrativa confessan<strong>do</strong>-se como um ser<br />

triste, mas que procura extrair da sua tristeza “uma compaixão imutável e vonta<strong>de</strong><br />

imbatível <strong>de</strong> viver e regozijar[-se]” (ESF, p. 204). Um pensamento, sem dúvida,<br />

<strong>de</strong>masia<strong>do</strong> humano.<br />

Em Ao vivo <strong>do</strong> Calvário, <strong>de</strong> Gore Vidal, embora Jesus não seja o personagem<br />

principal, sua figura compõe, com Timóteo e Santo (o apóstolo Paulo), a “trinda<strong>de</strong><br />

vidaliana” <strong>do</strong> romance. Jesus é a causa da existência <strong>do</strong> cristianismo, Santo é o seu<br />

administra<strong>do</strong>r e dissemina<strong>do</strong>r, e Timóteo é o escolhi<strong>do</strong> para contar toda a história. Nos<br />

três casos, Vidal subverte profundamente as implicações religiosas relacionadas a<br />

essas figuras, e a <strong>de</strong> Jesus, ao se basear na versão apresentada pelo narra<strong>do</strong>r<br />

Timóteo, situa-se em algum lugar bem distante <strong>de</strong> on<strong>de</strong> a colocou o imaginário cristão.<br />

Esse “anticristo” que Vidal constrói em seu “antievangelho” não é simplesmente uma<br />

oposição binária ao Jesus canoniza<strong>do</strong>, mas um vetor que Vidal usa para articular uma<br />

crítica corrosiva <strong>do</strong>s <strong>do</strong>gmas cristãos e minar o contexto que os produziu.<br />

Segun<strong>do</strong> Price (2000, p. 15), o Jesus Cristo <strong>do</strong> Novo Testamento “é uma figura<br />

composta” e apresenta muitas facetas: “exorcista, curan<strong>de</strong>iro, rei, profeta, sábio,<br />

rabino, semi<strong>de</strong>us, e por aí vai”. O Jesus <strong>de</strong> Vidal também se caracteriza pela<br />

multiplicida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bran<strong>do</strong>-se ao longo da narrativa: há o Jesus “reinterpreta<strong>do</strong>” <strong>de</strong><br />

Santo, Judas crucifica<strong>do</strong> em seu lugar, o Jesus sionista revolucionário, que se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra<br />

em Marvin, um “<strong>de</strong>tetive analista <strong>de</strong> computa<strong>do</strong>res”, e o Pirata, um hacker que está<br />

<strong>de</strong>struin<strong>do</strong> os registros da história cristã.<br />

O Jesus sionista, que é o “real” e “histórico” na versão <strong>de</strong> Vidal, é o mais<br />

subversivo <strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos <strong>de</strong> sua figura no romance, pois a sua participação na<br />

história judaica no primeiro século em nada se coaduna com a versão <strong>do</strong>s Evangelistas<br />

e Paulo; na verda<strong>de</strong>, ela a rasura em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s, a se basear no relato <strong>de</strong><br />

Timóteo. A questão envolven<strong>do</strong> Jesus, os ju<strong>de</strong>us e os romanos, por exemplo, é<br />

colocada sob uma perspectiva econômica e não teológica. As ações <strong>de</strong> Jesus visavam<br />

ao controle <strong>do</strong> Templo e às ré<strong>de</strong>as da política econômico-monetária, e não à<br />

transformação da visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> vigente através <strong>de</strong> um novo discurso religioso. Não<br />

há curas, não há milagres, não há Deus, não há parábolas — no máximo, os sermões<br />

<strong>de</strong> “rabino reformista”, os quais, ao que tu<strong>do</strong> indica, significavam um discurso<br />

conclaman<strong>do</strong> mudanças político-econômicas para o povo judaico. Como afirma<br />

Timóteo, “[n]a vida real Jesus foi <strong>de</strong> fato o rei ju<strong>de</strong>u, que ameaçara o <strong>do</strong>mínio romano<br />

ao mesmo tempo que o <strong>do</strong> rabina<strong>do</strong> <strong>do</strong> Templo”. 3 Contu<strong>do</strong>, esse Jesus não é o que<br />

passará para a história, simplesmente porque a sua “verda<strong>de</strong>ira história” não será<br />

conhecida, mas <strong>de</strong>vidamente manipulada, como revela Timóteo com uma <strong>do</strong>se <strong>de</strong><br />

candura e sarcasmo: “[n]aturalmente não ensinamos a verda<strong>de</strong>ira causa da<br />

crucificação mas somente a reportagem <strong>de</strong> capa” (AVDC, p. 114). O que se <strong>de</strong>duz que<br />

seja a “reportagem <strong>de</strong> capa” é o Jesus inventa<strong>do</strong> por Santo, cuja morte na cruz foi<br />

para redimir a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus peca<strong>do</strong>s e cuja ressurreição é a razão suprema<br />

para a fé em sua <strong>do</strong>utrina. 4<br />

Toda a interpretação <strong>de</strong> Santo, contu<strong>do</strong>, foi baseada na crucificação <strong>de</strong> Judas e<br />

não <strong>do</strong> Jesus real, o que a torna duplamente “falsa”: a história fictícia <strong>de</strong> um homem<br />

que não era Jesus. A crucificação no romance é abordada <strong>de</strong> uma forma tão profana<br />

que o conceito <strong>de</strong> carnavalização é o que vem à mente para explicar esta<br />

70<br />

Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit

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