Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG
Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG
Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Em Tese, Belo Horizonte, v. 10, p. 133-138, <strong>de</strong>z. 2006<br />
conseqüente liberação <strong>do</strong> Múltiplo como tratamento da natureza hipercomplexa <strong>do</strong><br />
real” (MARQUES, 1999, p. 64).<br />
No contexto interdisciplinar, não é difícil perceber que muito pouca coisa foi<br />
produzida até agora no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma aproximação entre Fernan<strong>do</strong> Pessoa e Jacques<br />
Lacan, tanto no campo das Letras quanto no da psicanálise. Portanto, com vistas a<br />
ampliar esse campo <strong>de</strong> interlocução, preten<strong>de</strong>u-se aproximar a poética <strong>do</strong> escritor<br />
português e a psicanálise lacaniana, principalmente aquela formulada nos anos 70, na<br />
qual, finaliza<strong>do</strong> o momento estruturalista, a teoria psicanalítica caminha no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
uma escritura não linear, dita borromeana. Esse movimento e a teoria da letra que ele<br />
traz encontram no texto “Lituraterra” (1971) e nos seminários Mais, ainda (1972-<br />
1973) e L’insu que sait <strong>de</strong> l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977) formulações<br />
crucias, daí o interesse em tratá-los <strong>de</strong> perto.<br />
1. De “oci<strong>de</strong>nta<strong>do</strong>” a “japoniza<strong>do</strong>”: um sujeito constelar<br />
Nos anos 70, Leyla Perrone-Moisés extraiu <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> Lacan, “Lituraterra”, a<br />
versão <strong>do</strong> “sujeito oci<strong>de</strong>nta<strong>do</strong>” e mostrou que o aci<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte localiza-se na<br />
fratura entre o sujeito e o objeto, entre a ciência e a metafísica, entre o intelectualismo<br />
e o sentimentalismo, e que essa fratura atravessa toda a poética pessoana. Trata-se<br />
agora <strong>de</strong> apanhar a questão por uma outra ponta, a ponta <strong>do</strong> “sujeito japoniza<strong>do</strong>,<br />
constela<strong>do</strong>”. Nesse senti<strong>do</strong>, interessa recortar no “Lituraterra” os impasses que a<br />
pulverização <strong>do</strong> sujeito cria e as saídas que ela constrói: no caso da obra <strong>do</strong> escritor<br />
português, a ficção heterônima e a escritura <strong>do</strong> <strong>de</strong>sassossego.<br />
Se o contexto <strong>de</strong> uma época é percebi<strong>do</strong> por um escritor através <strong>de</strong> seu<br />
temperamento (AIEX, 1985, p. 17), é inusita<strong>do</strong> aquilo que o temperamento pessoano<br />
(sempre ten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> para a <strong>de</strong>spersonalização) fará com os traços que a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
herda <strong>do</strong> Romantismo alemão e <strong>do</strong> Simbolismo francês. Ao se contrapor ao preceito<br />
clássico “conheça-te!”, Pessoa enuncia o preceito em jogo na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />
“<strong>de</strong>sconheça-te!”, e, para ele, “<strong>de</strong>sconhecer-se conscienciosamente é o emprego ativo<br />
da ironia” (PESSOA, 2000, p. 165). Escravo da multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> si próprio, o mo<strong>do</strong><br />
irônico pelo qual ele se <strong>de</strong>sconhece é a heteronímia, isto é, a criação <strong>de</strong> uma nebulosa<br />
<strong>de</strong> escritores e <strong>de</strong> suas respectivas ficções. Até o momento, po<strong>de</strong>-se afirmar que a<br />
galáxia pessoana chega a 72 heterônimos (LOPES, 1990, p. 167-168), cria<strong>do</strong>s, muitos<br />
<strong>de</strong>les, segun<strong>do</strong> um processo que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se aproximar <strong>do</strong> dispositivo <strong>do</strong> Witz, <strong>do</strong><br />
dito espirituoso (Pessoa, 1986, p. 93 et seq).<br />
Pela boca <strong>de</strong> um <strong>de</strong> seus Outros — Bernar<strong>do</strong> Soares — o escritor diz:<br />
Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir. Bêba<strong>do</strong> <strong>de</strong> me sentir,<br />
vagueio e an<strong>do</strong> certo. Se são horas, recolho-me ao escritório como qualquer outro. Se não<br />
são horas, vou até ao rio fitar o rio, como qualquer outro. Sou igual. E por traz <strong>de</strong> isso,<br />
céu meu, constelo-me às escondidas e tenho o meu infinito (L. <strong>do</strong> D., 20.07.1930,<br />
Fragmento 55).<br />
Pessoa apresenta aí um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser que ultrapassa a dimensão <strong>de</strong> uma<br />
ocorrência isolada. O dito funcionamento constelar emergiu e vigorou no final <strong>do</strong><br />
século XIX e na primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XX. Inaugura<strong>do</strong> por Stéphane Mallarmé,<br />
com o seu poema “Um lance <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s” (1897), esse acento constelar incidiu não<br />
apenas sobre o espaço poético, mas também sobre o campo <strong>do</strong> pensamento, no qual<br />
ele criou um <strong>estilo</strong> mosaico, tal como em Walter Benjamin. Ele manifestou-se ainda no<br />
campo das artes plásticas, como é o caso <strong>do</strong> pintor catalão Joan Miró, entre outros. No<br />
Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit<br />
134