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Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG

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Em Tese, Belo Horizonte, v. 10, p.80-84, <strong>de</strong>z.2006<br />

1913. O que a memória consciente preservou <strong>de</strong> Olinda foi um mínimo <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> gente.<br />

Eu me lembro <strong>de</strong> pouquíssimas pessoas. Por exemplo: — vejo uma imagem feminina. Mas<br />

é mais um chapéu <strong>do</strong> que uma mulher. (RODRIGUES, 1993, p. 12).<br />

As lembranças mostram o caráter fugidio da memória, além <strong>de</strong> nos remeter ao<br />

caráter triádico da memória, presente — passa<strong>do</strong> — futuro, ao sabermos que o resgate<br />

<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> acontece no presente. Muitas vezes, a reconstrução feita no agora impe<strong>de</strong><br />

que esse narra<strong>do</strong>r retome todas as sensações, impressões e lembranças <strong>de</strong> um<br />

passa<strong>do</strong> fugidio. O narra<strong>do</strong>r <strong>de</strong>monstra uma característica presente nas obras atuais, o<br />

que se mostra não é uma narrativa perfeita e completa, mas o inverso:<br />

Assistimos aos nossos dias ao nascimento da short story, que se emancipou da tradição<br />

oral e não mais permite essa lenta superposição <strong>de</strong> camadas finas e translúcidas, que<br />

representa a melhor imagem <strong>do</strong> processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz <strong>do</strong> dia,<br />

como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas.(BENJAMIN,<br />

1994, p. 206).<br />

Além da fragmentação em torno da memória <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, percebemos a<br />

fragmentação no conjunto da obra. Ao <strong>de</strong>screver suas memórias, o narra<strong>do</strong>r não<br />

consegue fornecer ao livro um caráter cronológico <strong>de</strong> suas rememorações. Os<br />

comentários pontuais, a introdução <strong>de</strong> fatos recentes, a dispersão <strong>do</strong>s assuntos são<br />

características tanto trazidas pelo uso <strong>do</strong> gênero crônica como pela fragmentação<br />

advinda por esse caráter memorialista:<br />

Tal obra, que tem como sujeito o tempo, nem mesmo precisa ser escrita em forma <strong>de</strong><br />

aforismos. É nos meandros e nos anéis <strong>de</strong> um <strong>estilo</strong> Antilogos que ela faz to<strong>do</strong>s os ro<strong>de</strong>ios<br />

necessários para juntar os últimos pedaços, arrastar em velocida<strong>de</strong>s diferentes to<strong>do</strong>s os<br />

fragmentos, em que cada um remete a um conjunto diferente, não remete a conjunto<br />

nenhum, ou só remete ao conjunto <strong>de</strong> <strong>estilo</strong>. (DELEUZE, 2003, p. 108).<br />

A estruturação <strong>de</strong> A menina sem estrela como uma obra fragmentada reafirma o<br />

valor <strong>do</strong> tempo, novamente, advin<strong>do</strong> com o uso da crônica e da memória. O tempo,<br />

ora se dirigin<strong>do</strong> ao passa<strong>do</strong>, ora ao presente e em alguns casos remeten<strong>do</strong> ao futuro,<br />

configura a base <strong>do</strong> livro. É através <strong>do</strong> tempo presente — crônica — que resgatamos<br />

um tempo que já aconteceu — memória:<br />

Acontece o contrário com uma obra que tem por objeto, ou melhor, por sujeito, o tempo.<br />

Ela diz respeito a fragmentos que não po<strong>de</strong>m mais se reajustar, é composta <strong>de</strong> pedaços<br />

que não fazem parte <strong>do</strong> mesmo puzzle, que não pertencem a uma totalida<strong>de</strong> prévia, que<br />

não emanam <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong>, mesmo que tenha si<strong>do</strong> perdida. (DELEUZE, 2003, p. 107).<br />

O mo<strong>do</strong> como o narra<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ssa obra retoma os fatos <strong>de</strong> sua infância e outras<br />

reminiscências, além <strong>do</strong>s fatos e <strong>do</strong>s comentários, que extrapolam muitas vezes a sua<br />

vivência, inseri<strong>do</strong>s nessa narrativa, contribuem para a literarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> A menina sem<br />

estrela. A subjetivida<strong>de</strong> presente nos discursos <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r é favorecida tanto pela<br />

fragmentação da memória, que permite que o narra<strong>do</strong>r extrapole os limites da<br />

realida<strong>de</strong>, como, também, pelo uso da crônica. Sen<strong>do</strong> essa obra memorialista voltada<br />

não somente para a concretização <strong>de</strong> suas lembranças, mas sim para uma<br />

rememoração carregada <strong>de</strong> lirismo.<br />

Essas foram algumas consi<strong>de</strong>rações observadas nessa obra rodrigueana que, na<br />

verda<strong>de</strong>, revelam novas inquietações que surgiram em mim e me fizeram <strong>de</strong>bruçar em<br />

outras artimanhas da memória nesse texto literário.<br />

Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit<br />

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