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Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG

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Em Tese, Belo Horizonte, v. 10, p. 85-90, <strong>de</strong>z. 2006<br />

outra realida<strong>de</strong>, na tentativa <strong>de</strong> retratar alguns temas relativos ao homem <strong>de</strong> seu<br />

tempo, to<strong>do</strong>s eles vincula<strong>do</strong>s ao corpo e atrela<strong>do</strong>s à morte, à memória, às artes<br />

plásticas ou literárias, à solidão, ao (homo) erotismo, à cida<strong>de</strong>, à noite, à melancolia,<br />

ao mar.<br />

Percebe-se que são vastas as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tratar a espacialização <strong>do</strong> corpo<br />

na obra <strong>de</strong>ste escritor, tornan<strong>do</strong>-se até mesmo difícil <strong>de</strong>smembrar tais instâncias. É<br />

necessário, portanto, restringir o foco, pois não se tem a intenção <strong>de</strong> esgotar as<br />

variadas leituras suscitadas, já que o texto al-bertiano se caracteriza pela<br />

fragmentação, em que muitas imagens surgem dispersas: “os corpos saem da água<br />

vesti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> moluscos vibráteis” (AL BERTO, 2000a, p. 22), “flutuarão astros atrás <strong>de</strong><br />

nossos corpos oceânicos” (2000a, p. 26), “ventos <strong>de</strong> fumo azulíneo tingem o<br />

melancólico corpo” (2000a, p. 49), “corpo contra corpo, acorda<strong>do</strong>s” (2000a, p. 53).<br />

No presente artigo, o foco analisa<strong>do</strong> é o corpo atrela<strong>do</strong> à escrita em À procura <strong>do</strong><br />

vento num jardim d’agosto (1977), livro <strong>de</strong> estréia <strong>de</strong> Al Berto, no qual relaciona-se o<br />

mo<strong>do</strong> como corpo e escrita se articulam com o próprio fazer literário. Por um la<strong>do</strong>, o<br />

texto está subordina<strong>do</strong> ao corpo, e, por outro, não há qualquer distanciamento entre<br />

eles. Para abordar tais singularida<strong>de</strong>s, é pertinente ressaltar que, segun<strong>do</strong> o<br />

esclarecimento <strong>de</strong> Luis Alberto Brandão Santos, “[...] quan<strong>do</strong> se fala <strong>de</strong> noções<br />

associadas ao corpo, ou à experiência sensível, já se está <strong>de</strong>scartan<strong>do</strong> a crença <strong>de</strong> um<br />

‘materialismo’ ou ‘empirismo’ essencialistas. O corpo também é conceito. O sensível<br />

também é da or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> inteligível” (SANTOS, 2002, p. 182-183). Portanto, po<strong>de</strong>-se<br />

tomar o corpo na construção ficcional <strong>de</strong> Al Berto como hipotético a partir <strong>do</strong> corpo<br />

referencial, pois,<br />

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[...] da reconhecibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s condiciona<strong>do</strong>res da experiência sensível, aludi<strong>do</strong>s na<br />

narrativa, a ficção po<strong>de</strong> explorar as margens da própria sensibilida<strong>de</strong>. Assim, se em seu<br />

realismo a narrativa opera por <strong>de</strong>limitação, já que um corpo hipotético ainda é um corpo,<br />

a ficcionalida<strong>de</strong> opera através <strong>do</strong> fascínio pelos <strong>de</strong>slimites, através da elaboração <strong>de</strong><br />

conjecturas <strong>de</strong> corpo. (SANTOS, 2002, p. 182-183).<br />

Assim, po<strong>de</strong>-se avançar na análise da forma como o corpo opera no livro <strong>de</strong> Al<br />

Berto: “a escrita que inventámos evadiu-se <strong>do</strong> corpo” (2000a, p. 12), “sempre tive<br />

me<strong>do</strong> <strong>de</strong> quan<strong>do</strong> começo a escrever. só o sangue, o ranho, o suor, têm verda<strong>de</strong>ira<br />

dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tinta” (2000a, p. 12), “os textos possíveis são o <strong>de</strong>spertar <strong>do</strong> corpo, suas<br />

pulsações bruscas, fragmentadas, outros corpos vibram, nomes que acen<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sejos.<br />

tu<strong>do</strong> anoto pacientemente” (2000a, p. 26). O sujeito da enunciação está sempre<br />

relatan<strong>do</strong> o ato <strong>de</strong> escrita, sempre falan<strong>do</strong> sobre o seu ofício: “não faço mais nada<br />

senão escrever e não estou a preparar as mortais obras completas. vegeto por <strong>de</strong>ntro<br />

da minha própria escrita. assumo a produção e a gestão <strong>do</strong> meu próprio lixo. De<br />

qualquer maneira só sei escrever não sei fazer mais nada” (2000a, p. 44).<br />

Para Félix Guattari, o espaço da escrita “[...] é, sem dúvida, um <strong>do</strong>s mais<br />

misteriosos que se nos oferece, e a postura <strong>do</strong> corpo, os ritmos respiratórios e<br />

cardíacos, as <strong>de</strong>scargas humorais nele interferem fortemente” (2000, p. 153). Em À<br />

procura <strong>do</strong> vento num jardim d’agosto, um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> momento é especialmente<br />

sugestivo <strong>de</strong> uma consonância com a afirmativa <strong>de</strong> Guattari, pois o texto <strong>de</strong> Al Berto<br />

parece mesmo configurar-se a partir <strong>do</strong> corpo, das experiências sensíveis:<br />

é tempo <strong>de</strong> vigília absoluta. escutar a voz, murmurar estrelas, abrir vermelhas frestas por<br />

on<strong>de</strong> o aparo da caneta injecta sílabas. rasgar o receio coalha<strong>do</strong> no peito e gritar, gritar<br />

até que o grito se perca no silêncio on<strong>de</strong> nasce a escrita. o corpo é o único suporte <strong>do</strong><br />

texto. o sangue, o esperma, a vida toda num estremecimento escondi<strong>do</strong> em cada palavra.<br />

Chegou o momento <strong>de</strong> nos alimentarmos com o que segrega o corpo. ranho, suor, mijo,<br />

cuspo, merda, o mais repugnante escarro. (...) horas e horas ouvin<strong>do</strong> os ruí<strong>do</strong>s das<br />

Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit

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