Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG
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Em Tese, Belo Horizonte, v. 10, p. 202-209, <strong>de</strong>z. 2006<br />
A semelhança entre a coisa ou o ser ausente e sua imagem presente na<br />
representação verbal ou icônica era, aliás, fator imprescindível para uma<br />
representação bem sucedida. A estrutura <strong>do</strong> signo-representação caracterizava-se pela<br />
duplicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> repetir e <strong>do</strong> intensificar e seu efeito era a constituição <strong>de</strong> um sujeito,<br />
por reflexão <strong>do</strong> dispositivo representativo. Sujeito solar, cuja razão o tornava capaz <strong>de</strong><br />
mo<strong>de</strong>lar e produzir suas representações. O cogito cartesiano fundara o mun<strong>do</strong> a partir<br />
<strong>do</strong> sujeito que pensa, racionalmente, e que era capaz <strong>de</strong> construir um mun<strong>do</strong>, através<br />
das idéias claras e distintas, retiran<strong>do</strong>-lhe, contu<strong>do</strong>, as irregularida<strong>de</strong>s advindas <strong>do</strong>s<br />
afetos. (COSTA LIMA, 2000, p. 87-93). Consolidava-se, assim, no século XVII, o<br />
processo epistemológico e filosófico <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>r renascentista — sujeito albertiniano<br />
— que, <strong>de</strong> um único ponto <strong>de</strong> vista, contemplava o mun<strong>do</strong> através <strong>de</strong> uma janela,<br />
traduzida pela moldura <strong>do</strong> livro ou da tela.<br />
As pinturas <strong>de</strong>sse perío<strong>do</strong> acoplam as premissas narrativas da representação,<br />
sen<strong>do</strong> passíveis <strong>de</strong> legibilida<strong>de</strong>, além <strong>de</strong> sua óbvia visibilida<strong>de</strong>. Nesse contexto<br />
imbricam-se o legível e o visível numa tessitura constituída pelos discursos e pelos<br />
percursos <strong>do</strong> olhar. Tem-se, então, na pintura, <strong>do</strong>is fatores <strong>de</strong>terminantes para o<br />
acesso ao conhecimento.<br />
Duas obras-primas — Las Meninas <strong>de</strong> Velásquez e Dom Quixote <strong>de</strong> Cervantes —<br />
congregam a intensificação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo representativo, uma vez que apresentam o<br />
processo <strong>de</strong> representação. Ao exibirem sua própria construção e <strong>de</strong>svelarem o ciclo<br />
da representação, <strong>do</strong>bram-se sobre si mesmas, constituin<strong>do</strong> a meta-representação.<br />
Contu<strong>do</strong>, ao fazê-lo, <strong>de</strong>sconstroem a representação e apontam para sua colocação em<br />
crise (MARIN, 1997, p. 40). Crise essa que se consolidaria cerca <strong>de</strong> <strong>do</strong>is séculos mais<br />
tar<strong>de</strong>, quan<strong>do</strong> a noção <strong>de</strong> representação unitária, mo<strong>de</strong>lada racionalmente por um<br />
sujeito central, tornar-se-á insustentável, para um “sujeito múltiplo, porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um<br />
olhar plural, um não-sujeito”, em suma (MARIN, 1994, p. 250).<br />
Os movimentos artísticos <strong>do</strong> século XIX, dirigi<strong>do</strong>s pelo prima<strong>do</strong> da função<br />
estética, que concebe as artes como ten<strong>do</strong> um fim em si mesmas, enquanto reserva ao<br />
receptor um papel proeminente, vão <strong>de</strong>finitivamente abalar a representação clássica.<br />
Abre-se, pois, aos poetas e aos artistas, um campo ilimita<strong>do</strong> <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s, cujo<br />
eixo prepon<strong>de</strong>rante será afirma<strong>do</strong> pela poética da negativida<strong>de</strong>, que se consolidará no<br />
século XX.<br />
A mímesis e a representação, <strong>do</strong>ravante refutadas, serão, no entanto, ao final<br />
<strong>de</strong>sse século, objeto <strong>de</strong> reconsi<strong>de</strong>ração por alguns teóricos das artes, <strong>de</strong>ntre os quais<br />
<strong>de</strong>staco Luiz Costa Lima e Georges Didi-Huberman. O primeiro propõe o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
uma mímesis <strong>de</strong>svinculada da imitação e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da realida<strong>de</strong>, mas passível <strong>de</strong><br />
propor uma nova visão da realida<strong>de</strong>. A representação, por sua vez, não sen<strong>do</strong> mais a<br />
“equivalência subjetiva <strong>de</strong> uma cena externa e objetiva”, se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra como<br />
“representação-efeito, provocada não por uma cena referencial, mas pela expressão da<br />
cena em alguém”. Refutan<strong>do</strong> a concepção mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> sujeito solar, como aquele que<br />
é origem e coman<strong>do</strong> das próprias representações, este autor ressalta a concepção <strong>de</strong><br />
“sujeito fratura<strong>do</strong>”, cuja posição não está <strong>de</strong>finida a priori, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> variáveis<br />
contextuais (COSTA LIMA, 2000, p. 21-27). Trata-se, aliás, na acepção <strong>de</strong> Didi-<br />
Huberman, <strong>de</strong> um “sujeito dilacera<strong>do</strong>”.<br />
Buscan<strong>do</strong> tecer as relações funda<strong>do</strong>ras entre imagem, figura, mímesis e<br />
representação, ressalto a gênese das imagens a partir <strong>de</strong> seu vínculo com a busca <strong>de</strong><br />
entendimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e da morte. Assim, a primitiva produção <strong>de</strong> imagens resgata o<br />
senti<strong>do</strong> físico <strong>do</strong> estatuto experimental e o senti<strong>do</strong> gnoseológico <strong>de</strong> uma apreensão <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>. Da mesma forma, vinculan<strong>do</strong>-se à morte, a imagem torna-se, pelo simulacro,<br />
Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit<br />
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