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Contornos do Indizível: o estilo de Clarice Lispector - Fale - UFMG

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Em Tese, Belo Horizonte, v. 10, p. 190-195, <strong>de</strong>z. 2006<br />

corpo já é potência à ação. Desse mo<strong>do</strong>, o filósofo resume a diferença entre corpo<br />

objetivo e corpo vivi<strong>do</strong>, que coexistem num mesmo mun<strong>do</strong>: não estou diante <strong>de</strong> meu<br />

corpo, estou <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> meu corpo, ou, mais certamente, sou o meu corpo. As suas<br />

análises preocupam-se com o “mun<strong>do</strong> da vida”, análises cujos elementos passam pelo<br />

corpo, nosso “ancora<strong>do</strong>uro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”, lugar que tem a sua expressivida<strong>de</strong> própria,<br />

meio articula<strong>do</strong>r das primeiras e fundamentais significações. É nesse senti<strong>do</strong> que a<br />

existência é corporal; é, portanto, na “experiência vivida” ou na “existência” que se<br />

po<strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r a complexa trama <strong>do</strong> comportamento humano. E, por sua vez, a<br />

“experiência vivida” funda-se no ato perceptivo, campo privilegia<strong>do</strong> <strong>do</strong> entrelaçamento<br />

corpo-mun<strong>do</strong>.<br />

Como diante <strong>de</strong> um espelho, o corpo po<strong>de</strong> ser visto como um objeto, admitin<strong>do</strong>se<br />

um <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong> sujeito em observa<strong>do</strong>r e observa<strong>do</strong>. O permanente<br />

<strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong> corpo em um outro é a raiz <strong>de</strong> sua ambigüida<strong>de</strong> original, faz <strong>de</strong>le<br />

um horizonte aberto às percepções e o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar plenamente constituí<strong>do</strong>. Para<br />

Merleau-Ponty, cada um <strong>de</strong> nós traz o outro, o mun<strong>do</strong>, o cultural, o social, o corpo e a<br />

linguagem forman<strong>do</strong> um nó inextricável. É essa imagem complexa <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong><br />

inconclusa, na qual as contradições existem, mas não se resolvem pelo pensamento, o<br />

centro da concepção <strong>de</strong> Merleau-Ponty, cuja teoria permite analisar e, ao mesmo<br />

tempo, ajuda a compreen<strong>de</strong>r a existência ambígua, exposta na escrita inacabada da<br />

obra <strong>do</strong> escritor Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>.<br />

Para investigar as imagens <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, é preciso recorrer à sua obra<br />

poética e ficcional, transitar por seus <strong>de</strong>poimentos e entrevistas, <strong>de</strong>svelar o<br />

entrelaçamento entre carta e crítica, procurar enten<strong>de</strong>r seu pensamento encerra<strong>do</strong> na<br />

correspondência enquanto testemunho e memória. No gran<strong>de</strong> painel da epistolografia,<br />

revelam-se tensões e contradições experimentadas pelo escritor em nuances<br />

resguardadas pela escrita profundamente pessoal, cujo traço <strong>de</strong> oralida<strong>de</strong> irrompe para<br />

dar-lhe o tom <strong>de</strong> controvertida expressão lingüística. Em Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, carta,<br />

testemunho, ficção, biografia ligam-se estreitamente, compon<strong>do</strong> um texto complexo e<br />

estimulante para os pesquisa<strong>do</strong>res <strong>de</strong> sua obra.<br />

Naturalmente, a crítica produziu imagens <strong>do</strong> intelectual. Entretanto, no espaço das<br />

cartas e nas respostas <strong>de</strong> seus interlocutores é que se po<strong>de</strong> observar melhor como se<br />

<strong>de</strong>u a construção e a recepção das imagens <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, como se mostrou a<br />

si mesmo e aos outros, pois as cartas <strong>de</strong>volvem novas imagens, às vezes<br />

contraditórias, <strong>do</strong> escritor. Os textos das cartas <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> apresentam uma<br />

estrutura intrincada, cujos assuntos e temas, quase sempre em idas e vindas,<br />

aparecem <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> recorrente em diversos <strong>de</strong>stinatários. As imagens se constroem<br />

obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> a <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s ritmos, manifestan<strong>do</strong>-se simultaneamente, sem que uma<br />

anule a outra, não se constituin<strong>do</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> homogêneo. Portanto, julgo necessário<br />

contextualizar a sua produção literária e epistolar para possibilitar uma or<strong>de</strong>nação mais<br />

metódica <strong>de</strong>sse universo calei<strong>do</strong>scópico <strong>de</strong> imagens.<br />

A obra <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, marcada pelos conflitos próprios à natureza<br />

humana, é plena <strong>de</strong> questionamentos que instigam o leitor a acompanhar as<br />

contradições <strong>de</strong> um corpo volta<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong>. Embora a partir <strong>de</strong> seus textos seja<br />

possível tratar <strong>de</strong> inúmeras questões literárias e culturais importantes, algumas estão<br />

mais intrinsecamente vinculadas entre si, como: a relação entre vida e obra; o traço<br />

autobiográfico presente nos textos ficcionais; o fingimento versus a sincerida<strong>de</strong>; a<br />

amiza<strong>de</strong> literária; o papel <strong>do</strong> intelectual; o engajamento político <strong>do</strong> artista; o sujeitoator<br />

que, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> ambíguo, se exibe indistintamente nos espaços da vida privada e da<br />

vida pública; temas aborda<strong>do</strong>s com freqüência pela crítica literária contemporânea.<br />

Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit<br />

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