As tensões temporais em Mrs Dalloway
As tensões temporais em Mrs Dalloway
As tensões temporais em Mrs Dalloway
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
fosse “sentimental” ficar pensando e atualizando o passado, conclui Clarissa, dedicando a<br />
palavra “sentimental” a Peter. O que pensaria ele, no seu retorno? O t<strong>em</strong>po marca uma rede<br />
que se constrói entre a atualização do passado, os pensamentos do presente e as incertezas do<br />
futuro (o que pensaria Peter, quando voltasse?), tal como uma aranha que tece sua teia. A<br />
antecipação de um t<strong>em</strong>po futuro faz Clarissa pensar na sua idade – presente - e sobre os meses<br />
e anos que se passaram – passado. Imaginar um t<strong>em</strong>po que virá estabelece uma ponte<br />
imediata com o t<strong>em</strong>po que já existiu e que não existe mais, a não ser pelo bom uso da<br />
m<strong>em</strong>ória, que deve estar de acordo com as percepções oferecidas no t<strong>em</strong>po presente.<br />
[...] plunged into the very heart of the moment, transfixed it,<br />
there - the moment of this June morning on which was the pressure of<br />
all the other mornings, seeing the glass, the dressing-table, and all the<br />
bottles afresh, collecting the whole of her at one point (as she looked<br />
into the glass), seeing the delicate pink face of the woman who was<br />
that very night to give a party; of Clarissa <strong>Dalloway</strong>; of herself. 174<br />
O momento exato de junho encarna a pressão de todas as outras manhãs, ou seja, a<br />
pontualidade da t<strong>em</strong>poralidade cronológica se mistura com a força germinativa de todas as<br />
outras manhãs que Clarissa carrega consigo. <strong>As</strong> t<strong>em</strong>poralidades mostram sua imbricação, da<br />
mesma forma <strong>em</strong> que as experiências vividas mostram sua condição de existência, e por isso,<br />
sua força eternamente atuante. A pressão de todas as manhãs pode ser lida como o equivalente<br />
às ruínas propostas por Benjamin <strong>em</strong> sua teoria sobre a construção da história. Essas ruínas,<br />
na medida <strong>em</strong> que existiram, estarão para s<strong>em</strong>pre atuando como forças germinativas, <strong>em</strong><br />
qualquer momento. A referência ao mês de junho - t<strong>em</strong>poralidade cronológica – também<br />
possibilita à Clarissa perceber-se como totalidade, pois ao olhar-se no espelho, ela<br />
“recompõe-se” <strong>em</strong> uma só mulher que dará uma festa nesta mesma noite, <strong>em</strong> Clarissa<br />
<strong>Dalloway</strong>, <strong>em</strong> si mesma. A t<strong>em</strong>poralidade cronológica serve como referência ao bom<br />
funcionamento da sociedade, mas também à própria identidade 175 . Ao apreender-se <strong>em</strong><br />
174 Id<strong>em</strong>. “[...] precipitou-se no próprio coração do momento, varou-o, ali – aquele momento de uma manhã de<br />
junho <strong>em</strong> que havia o peso de todas as manhãs, vendo de novo o espelho, o toucador, todos os frascos,<br />
concentrando-se inteira <strong>em</strong> um único ponto (enquanto se olhava no espelho), a fitar a delicada face rósea da<br />
mulher que naquela mesma noite ia dar uma recepção; a face de Clarissa <strong>Dalloway</strong>, a sua própria face”. p. 39.<br />
175 Bourdieu faz referência ao nome próprio como ilusão de identidade, pois ressalta que, com o passar do t<strong>em</strong>po,<br />
nunca se é exatamente o mesmo. O nome próprio e o número de identidade, por ex<strong>em</strong>plo, aprisionariam o<br />
sujeito a uma ilusão de identidade. Como contraposição, faz uso do método de Proust, que situa seus<br />
personagens s<strong>em</strong>pre antecipados por artigos, denotando que tal personag<strong>em</strong> só é ele mesmo naquele t<strong>em</strong>po<br />
específico. Talvez esta ilusão seja uma estratégia de defesa de Clarissa, para não perder-se no fluxo de suas<br />
r<strong>em</strong><strong>em</strong>orações. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO,<br />
Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.<br />
82