As tensões temporais em Mrs Dalloway
As tensões temporais em Mrs Dalloway
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presente toma forma. Peter conta que, atualmente, está apaixonado por uma mulher indiana, o<br />
que faz Clarissa pensar: “[...] he is in love. He has that, she felt; he is in love” 182 . Conclui-se<br />
que Peter sente o amor que falta à Clarissa sentir, pois ela não ama Richard, mesmo sendo<br />
casada com ele. Casamento por conveniência, mais do que por amor, é a possibilidade que a<br />
sociedade lhe oferece. Enquanto conversam sobre o novo amor de Peter, parec<strong>em</strong> estar<br />
duelando para ver qu<strong>em</strong> sente mais dor pelo amor que ambos abandonaram: “ – and then to<br />
his utter surprise, suddenly thrown by those uncontrollable forces thrown through the air, he<br />
burst into tears; wept; wept without the least shame; sitting on the sofa, the tears running<br />
down his cheeks” 183 . Este choro abrupto pode ser pensado como reação de resistência à<br />
padronização moral e subjetiva instaurada na sociedade, que impede, por ex<strong>em</strong>plo, a<br />
realização de um grande amor. O retorno constante das l<strong>em</strong>branças r<strong>em</strong>ete à tensão eterna<br />
entre a função condicionadora da t<strong>em</strong>poralidade cronológica e a função libertadora da<br />
t<strong>em</strong>poralidade afetiva. A crise d<strong>em</strong>onstrada pelo choro compulsivo de Peter pode estar<br />
assinalando a existência de uma diferença essencial entre a experiência masculina e a<br />
f<strong>em</strong>inina na sociedade inglesa do início do século XX. Enquanto Peter se construiu como<br />
sujeito, ao apresentar sua capacidade singular de ação na esfera publica, à Clarissa restou<br />
viver uma vida habitual, de preferência s<strong>em</strong> os grandes saltos <strong>em</strong>ocionais que, para ela,<br />
seriam insuportáveis, pois romperiam com o seu mecanismo de defesa e a tornariam muito<br />
vulnerável à intensidade da vida.<br />
O choro de Peter também l<strong>em</strong>bra o funcionamento do Big Ben, enquanto força que se<br />
produz no ar e depois se dissolve. Neste caso, no entanto, estas forças são de uma ord<strong>em</strong><br />
incontrolável, representando a t<strong>em</strong>poralidade afetiva e d<strong>em</strong>onstrando a existência de uma rede<br />
t<strong>em</strong>poral que não cessa de se imbricar. Em reflexo ao choro de Peter, Clarissa também se<br />
percebe capturada numa rede de imposições, mas sente que sua condição é mais vazia de<br />
século XIX, através de Goethe e do romantismo, por um lado, e através da divisão econômica do trabalho, por<br />
outro, outro ideal se levantou: os indivíduos liberados de vínculos históricos agora desejavam distinguir-se um<br />
do outro. A escala dos valôres humanos já não é constituída pelo ‘ser humano <strong>em</strong> geral’ <strong>em</strong> cada indivíduo,<br />
mas antes pela unicidade e insubstituibilidade qualitativas do hom<strong>em</strong>”. SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida<br />
mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano, op. cit., p. 27. A viag<strong>em</strong> de Peter à Índia,<br />
por ex<strong>em</strong>plo, além de outras experiências específicas, faz<strong>em</strong> dele um hom<strong>em</strong> singular, diferente dos outros<br />
tantos que segu<strong>em</strong> o mesmo caminho e ader<strong>em</strong> às mesmas causas determinadas.<br />
182<br />
WOOLF, Virginia. <strong>Mrs</strong> <strong>Dalloway</strong>, op. cit., p. 33. “[...] ele está amando. T<strong>em</strong> isso, sentiu; ele está amando”. p.<br />
46.<br />
183<br />
Id<strong>em</strong>, p. 34. “[...] e para sua própria surpresa, subitamente vencido pelas incontroláveis forças esparsas no ar,<br />
rompeu <strong>em</strong> pranto; chorou; chorou s<strong>em</strong> a mínima vergonha, sentando no sofá, com as lágrimas a deslizar<strong>em</strong>lhe<br />
pelas faces”. p. 48.<br />
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