As tensões temporais em Mrs Dalloway
As tensões temporais em Mrs Dalloway
As tensões temporais em Mrs Dalloway
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
determinado dia do mês de junho, Clarissa sabe qu<strong>em</strong> é e o que deve fazer. Os afazeres<br />
domésticos são seus deveres e reflet<strong>em</strong> uma condição de hábito particular ao sexo f<strong>em</strong>inino<br />
no seu t<strong>em</strong>po e local específico, no caso, na Inglaterra do começo do século XX. O fluxo de<br />
seu pensamento e de sua “crise” interrompe-se no momento <strong>em</strong> que Clarissa percebe sua<br />
imag<strong>em</strong> no espelho como reflexo de seu locus 176 social. Ao olhar-se no espelho, adequa-se à<br />
sua imag<strong>em</strong>, forjada pelos valores patriarcais, e insere-se no ritmo da t<strong>em</strong>poralidade<br />
cronológica. Procura o vestido que irá usar na festa e que ostentará sua imag<strong>em</strong>. Pensa no que<br />
precisa fazer até a hora da festa: arrumar o vestido, escrever “and see that things generally<br />
were more or less in order” 177 . A ação de colocar as coisas <strong>em</strong> seus lugares, de ordená-las,<br />
r<strong>em</strong>ete ao poder da t<strong>em</strong>poralidade cronológica sobre Clarissa. Sua atitude vincula-se ao t<strong>em</strong>po<br />
da produção, ordenado essencialmente pelo cronos, que impõe uma linearidade à própria vida.<br />
A casa estava sendo arrumada para a festa, para o futuro, para uma noite que está por vir,<br />
confirmando a relação de alienação, apontada por Marx, como conseqüência do trabalho<br />
produzido para o futuro – ideal da forma do trabalho industrial. <strong>As</strong> ações cotidianas de<br />
Clarissa estão orientadas para a festa, fazendo com que seus atos sejam insignificantes, no<br />
momento <strong>em</strong> que estão sendo realizados. Deste ponto de vista, é possível confirmar que as<br />
crises de Clarissa também provêm da falta de sentido <strong>em</strong> seus atos, efeito da t<strong>em</strong>poralidade<br />
histórica na qual vive, encarnada radicalmente por Septimus.<br />
Clarissa senta e costura seu vestido, feito por Sally. Estava tranqüila, mal ouvira a<br />
campanhia tocar e n<strong>em</strong> se dera conta da chegada de Peter. “She will see me. After five years<br />
in India, Clarissa will see me” 178 . O reencontro dos dois é marcado pela t<strong>em</strong>poralidade<br />
cronológica, que só pontua o futuro de acordo com o passado, esquecendo do presente:<br />
Clarissa verá Peter, depois de cinco anos. A conversa dos dois soa familiar e estranha, ao<br />
mesmo t<strong>em</strong>po, r<strong>em</strong>etendo à tensão cronos–afeto. A atualização de l<strong>em</strong>branças - carregadas de<br />
sentimentos -, parecia querer romper com a organização da vida de Clarissa, particularmente<br />
através da questão da escolha. Por que ela não havia escolhido Peter? Se tivesse... <strong>As</strong><br />
176<br />
A idéia de um locus que tenha um funcionamento político veio a ser analisada através do campo da teoria<br />
f<strong>em</strong>inista. De acordo com Claudia de Lima Costa “[...] localizações (independent<strong>em</strong>ente de quão locais ou<br />
diminutas) são inevitavelmente pontuadas e cortadas por diferenças e <strong>tensões</strong> múltiplas, b<strong>em</strong> como por<br />
circuitos e fronteiras que exced<strong>em</strong> a lógica binária do poder”. COSTA, Cláudia de Lima. O sujeito no<br />
f<strong>em</strong>inismo. Revisitando os debates. Cadernos Pagu, 19, 2002. p.59-90. p. 88. Através desta descrição, é<br />
possível pensar que uma localização de gênero, no caso, constitui-se <strong>em</strong> potencial para seu próprio<br />
deslocamento. Clarissa utiliza seu locus da melhor maneira que lhe é possível e, desta forma, o manejamento<br />
que faz dele e nele é de essencial importância para a sua sobrevivência na tensão cronos x afeto.<br />
177<br />
WOOLF, Virginia. <strong>Mrs</strong> <strong>Dalloway</strong>, op. cit., P. 28. “[...] e ver se as coisas iam marchando mais ou menos <strong>em</strong><br />
ord<strong>em</strong>”. p. 40.<br />
178<br />
Id<strong>em</strong>, p. 29. “- A mim, receberá. Depois de cinco anos na Índia, Clarissa me receberá”. p. 42.<br />
83