O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
encontrei aborrecido e temido por todos. Não foi uma nem duas vezes que me arrependi da minha carida<strong>de</strong> e<br />
<strong>de</strong> me terem lembrado as tuas encomendações sempre que eu saia.<br />
- Não diga assim, Francisco. Ele há <strong>de</strong> ficar bondinho, com o favor <strong>de</strong> Deus. Você há <strong>de</strong> ver. Não há tanta<br />
gente que nasce ruim e que pelo tempo adiante fica boa?<br />
- Enfim, ai o tens. Foi o menino que encontrei, e agora agüenta-te com ele, que tem sangue no olho e cabelo<br />
na venta.<br />
Dias <strong>de</strong>pois, Lourenço já apresentava aspecto diferente do que trouxera. Marcelina tinha feito para ele ceroula<br />
e camisa nova, e principiou a sua obra <strong>de</strong> regeneração pela limpa do corpo.<br />
Á tardinha, entrando Francisco com o feixe <strong>de</strong> capim que fora cortar na baixa para o cavalo, ficou admirado<br />
<strong>de</strong> ver a mudança <strong>de</strong> Lourenço.<br />
A limpa corporal tinha sido completa.<br />
Desapareceu o cabelo sórdido e especado, que fora cortado rente, as rajás que <strong>de</strong>sfiguravam a cara, as unhas<br />
que se podiam comparar com as garras dos carcarás. Lourenço mostrava-se agora na realida<strong>de</strong> outro do que<br />
viera. O banho geral que lhe foi dado por Marcelina o poz ao natural. A cara <strong>de</strong>spojada da crosta terrena em<br />
que se envolvia, como em mascara, atestava pela brancura que o menino era <strong>de</strong> boa origem. Os vasos azuis<br />
<strong>de</strong>senhavam-se sob a cútis das faces, murchadas pouco antes, agora porém refrescadas pela ablução saudável,<br />
e como remoçadas pela pronta reação que é natural da meninice.<br />
Conheceu-se então que o menino não era feio. Tinha a fronte espaçosa, os olhos rasgados e negros mas <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>svairado brilho, efeito das insônias que curtia; aquilino o nariz; bem proporcionada a boca; fendido o<br />
queixo. Lia-se-lhe porém no semblante móvel e no olhar sorrateiro, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser observador, a<br />
<strong>de</strong>sconfiança, que é uma das manifestações naturais <strong>de</strong> quem se afez a obrar ações reprovadas, a cuja pratica<br />
se não animaria, se lhe não fossem propícios os escon<strong>de</strong>rijos, as trevas, os ermos, que prometem a impunida<strong>de</strong><br />
e quase a asseguram.<br />
Mas Lourenço, posto que <strong>de</strong> todo solto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros anos, não tinha certos vícios que rebaixam nas<br />
cida<strong>de</strong>s populosas a infância entregue a seu próprio e único alvedrio e direção. Ele era <strong>de</strong> índole mau, e<br />
ce<strong>de</strong>ndo ás impreteríveis e fatais leis do instinto, fora arrastado inumeráveis vezes a cometer atos reprovados.<br />
Ignorante, porém, das vilezas que os meninos apren<strong>de</strong>m nos colégios mal administrados, e que das mais puras<br />
e inocentes almas fazem pacientes e propagadores do enredo, da mentira e <strong>de</strong> vergonhosos prazeres que<br />
<strong>de</strong>snaturam as mais fortes e viris organizações, ele guardava ainda no coração intactos e como adormecidos os<br />
estímulos próprios do homem, que ainda metido no charco das paixões, não lhes bebe a lama como a dos<br />
charcos bebem os animais.<br />
As paixões <strong>de</strong> Lourenço davam para a briga, o roubo, e até para o assassínio, posto que nunca tivesse tirado<br />
diretamente a vida <strong>de</strong> ninguém. Causava-lhe prazer <strong>de</strong>struir as animadas e as inanimadas criaturas, que não<br />
eram bastantemente fortes para fugir ás suas arremetidas, ou resistir a seu gênio <strong>de</strong>molidor. Mutilava as<br />
arvores, por <strong>de</strong>spoja-las <strong>de</strong> uma parte <strong>de</strong> sua forma e faze-las <strong>de</strong>feituosas. Dava pancadas nos cães por ouvilos<br />
soltar gritos <strong>de</strong> dor. Com o pa<strong>de</strong>cimento mudo da arvore, e com o ruidoso do animal, ele se alegrava,<br />
porque era mau <strong>de</strong> coração; mas não usava habitualmente a mentira, a traição, nem tinha outros vícios feios e<br />
sentimentos vis que revelam da parte <strong>de</strong> quem os cultiva, animo fraco e no todo <strong>de</strong>sprezível. Era o perverso da<br />
selva, duro, difícil, mas não impossível <strong>de</strong> vencer-se, e não o das côrtes, nojento, infame e tão fácil <strong>de</strong><br />
prostrar-se quão impossível <strong>de</strong> corrigir-se. Era o malvado ignorante, arrebatado, e não o corruptor manhoso,<br />
cortês, polido, muito mais danoso do que o malvado, para o qual há prisões e castigos; o corruptor entre em<br />
toda a parte impunemente, e com todos e com tudo comunica a sua perversão: suas palavras adocicadas, os<br />
gestos insinuantes, os olhares, os sorrisos, os gracejos, os agrados, os serviços gratuitos, os presentes abremlhe<br />
o espirito infantil, o seio da família crédula e até o coração do amigo confiante. Dentro em pouco, <strong>de</strong><br />
ordinário quando já não é tempo <strong>de</strong> atalhar o mal, sentem-se estes dominados da peçonha mortífera, e perdido<br />
no conceito dos que tiveram bastante habilida<strong>de</strong> ou felicida<strong>de</strong> para evitar o contato com o envenenador.<br />
O sitio <strong>de</strong> Francisco, pelo lado do sul, confinava com as terras on<strong>de</strong> o senho do engenho Bujari tinha umas<br />
carvoeiras, que ficavam muito <strong>de</strong>ntro. Não havia ai casa <strong>de</strong>cente, mas uma palhoça ligeiramente feita, on<strong>de</strong> se<br />
abrigava ele, quando vinha dar-lhes uma vista d’olhos. Para evitar que estranhos, aproveitando-se dos<br />
cajueirais, fossem fazer carvão em sua ausência, tinha ali o senhor <strong>de</strong> engenho um casal <strong>de</strong> negros idosos, cuja<br />
ocupação não era outra que pôr sentido nas terras, guarda-las <strong>de</strong> intrusos, tratar dos cajueiros existentes e<br />
plantar novos, afim <strong>de</strong> que se não extinguissem os cajueirais.<br />
Para se ir á palhoça, distante ainda menos <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um quarto <strong>de</strong> légua da estrada, tomava-se por um<br />
estreito trilho que <strong>de</strong>sta partia, <strong>de</strong>ntre duas touceiras <strong>de</strong> capimassú, e se metia para <strong>de</strong>ntro, ocultando-se pouco<br />
adiante por traz das primeiras arvores da capoeira.<br />
Um dia, já ao anoitecer, por ocasião <strong>de</strong> Marcelina entrar para acen<strong>de</strong>r a can<strong>de</strong>ia, Lourenço, que passará a