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O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

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intimamente ligada com todas estas prendas não se confun<strong>de</strong> com elas, e sem se <strong>de</strong>ixar ver, porque não é<br />

visível, <strong>de</strong>ixa-se adivinhar, conhecer, sentir na bonda<strong>de</strong>, na <strong>de</strong>dicação, na conformida<strong>de</strong> com o sentir da<br />

pessoa que lhe é idêntica nas inclinações, nos gostos, no estado espiritual que lhes é comum.<br />

Certamente ele imaginava ser feliz ao lado <strong>de</strong>ssa existência seleta, <strong>de</strong>ssa alma que constituía a essência dos<br />

seus <strong>de</strong>sejos, das suas vaida<strong>de</strong>s, do seu nobre orgulho; mas essa felicida<strong>de</strong> ele nunca a imaginou <strong>de</strong> outra<br />

forma. Por isso, tanto que viu entre suas mãos o tesouro longamente apetecido, a única idéia que lhe passou<br />

pela mente foi a <strong>de</strong> que cessara enfim o seu tormento e começara, pelo gozo dos bens sonhados, o resgate dos<br />

males curtidos; a idéia <strong>de</strong>, prevalecendo-se das circunstancias, sujeitar o ente querido e alcançado ao papel <strong>de</strong><br />

instrumento <strong>de</strong> paixões menos dignas, essa ele não a teve então, porque não a tivera nunca. No coração do<br />

jovem português havia o afeto generoso do amante, não os ardores animais do barregão.<br />

Cortando pelas ruas exteriores, dando ro<strong>de</strong>ios, atravessando becos <strong>de</strong>sertos, Coelho chegou com a senhora-<strong>de</strong>engenho<br />

ao embarcadouro. A Borboleta era a única embarcação surta no rio.<br />

Como a revolta se concentrara, <strong>de</strong>ste lado a vila aparecia quase <strong>de</strong>serta. O dia estava em seu começo, mas<br />

assim as casas <strong>de</strong> morada como as <strong>de</strong> negocio mostravam-se fechadas; e só por intervalos passavam pela<br />

frente <strong>de</strong>las os magotes que andavam exercitando o ignóbil oficio da rapina. Vamos embarcar, senhora - disse<br />

Coelho, <strong>de</strong>scendo a margem, on<strong>de</strong> então se viam gran<strong>de</strong>s mangues <strong>de</strong> basta e estendida folhagem.<br />

- Embarcar? inquiriu a senhora-<strong>de</strong>-engenho, não sem surpresa. Embarcar para on<strong>de</strong>, Sr. Coelho?<br />

- Senhora, o momento é grave, e não me dá lugar a refletir sobre a escolha do porto <strong>de</strong> salvamento.<br />

Correremos á mercê das águas e dos ventos, e, uma vez longe dos perigos que vos ameaçam, pensaremos<br />

então com serenida<strong>de</strong> sobre esse objeto.<br />

- Que estais dizendo? tornou d. Damiana, mais pálida, e porventura mais abalada do que estava antes.<br />

Talvez só nesse momento a sua <strong>de</strong>sgraça se lhe <strong>de</strong>senhou tal qual era na imaginação, até então tolhida e<br />

obscurecida pelo terror que, por mais próximo da morte, <strong>de</strong>vera ser maior e mais intenso.<br />

- Tencionais então levar-me para fora <strong>de</strong> Goiana? perguntou ela, com tremula e quase chorosa voz.<br />

- Certamente, minha senhora, certamente. Goiana neste momento tem para vós sentimentos <strong>de</strong> madrasta, não<br />

<strong>de</strong> mãe. Não ouvis aqueles tiros, aqueles ruídos sinistros, aquele vozear confuso e medonho? Eles indicam<br />

que o povo é o triunfador, que os mascates estão senhores da vila...<br />

- Já sei, já sei tudo isto - interrompeu ela freneticamente.<br />

- Pois bem. O povo é exigente, e vinga-se neste momento dos nobres. Vosso marido, senhora minha, <strong>de</strong>ve já<br />

ter acabado às mãos dos populares. Pois se ele acabou, acabarei tantém eu - disse a senhor-<strong>de</strong>-engenho<br />

soluçando.<br />

- Não, isso nunca. Já não pertenceis nem a vós, nem a ele, observou Coelho.<br />

- E a quem pertenço então? perguntou ela com altivez.<br />

- O <strong>de</strong>stino confiou a mim a vossa guarda, e hei <strong>de</strong> salvar-vos, ainda que a troco do meu sangue.<br />

Sem meu marido, senhor, não quero a vida. Senhora d. Damiana! exclamou Coelho com entranhável<br />

amargura que lhe estalara nos lábios como se fora vesícula <strong>de</strong> fel.<br />

É o que vos digo, Sr. Coelho - repetiu a gentil senhora com a firmeza que indica as profundas convicções. Só<br />

agora, continuou ela, só agora compreendo todo o horror da minha situação. Porque fugi eu? Porque não me<br />

<strong>de</strong>ixei matar pelo povo, ao lado <strong>de</strong> meu marido?<br />

- Porque a sorte tinha já assentado que vós <strong>de</strong>víeis sobreviver a ele, talvez para completar uma existência que<br />

vegeta entre as luzes e as sombras do mundo, sem experimentar outras impressões que não sejam as que as<br />

sombras, não as luzes, <strong>de</strong>spertam - respon<strong>de</strong>u o jovem negociante em tom sentido. Mas para que falais ainda -<br />

continuou logo, como quem se reanimava ao calor <strong>de</strong> uma inspiração súbita - para que falais ainda em - uma<br />

existência que já <strong>de</strong>ve pertencer ao passado? A esta hora, senhora minha, <strong>de</strong>veis estar viuva, isto é, livre.<br />

- Sois cruel, Sr. Coelho! - retorquiu com voz amargurada a mulher do sargento-mór. Porque trazeis ao meu<br />

espirito este fúnebre pensamento? Houve um momento na minha vida em que cheguei a supor que em vosso<br />

coração existia um sentimento fidalgo.<br />

- Que quereis dizer, Sra. d. Damiana? interrogou o negociante.<br />

Que pensei que, não obstante o rancor que ten<strong>de</strong>s ao Sr. João da Cunha, e que vós explicais atribuindo-o à<br />

contrarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> certo afeto que vos inspirei, não hesitaríeis um só momento em salvar<strong>de</strong>s do acabamento o<br />

objeto <strong>de</strong>sse rancor, se a salvação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse <strong>de</strong> vós e eu vo-la lembrasse com as lagrimas nos olhos, como<br />

agora faço. Vejo, porém, Sr. Coelho, que o vosso ódio é maior do que o vosso amor, e que só a minha<br />

<strong>de</strong>sgraça, esta sim não tem medida nem limite na terra.<br />

- Pensáveis então, senhora... - retrucou o português - Que pensáveis vós? Dizei francamente a vossa idéia.<br />

- Ah! Quereis ouvir-me? Pois bem, senhor, escutai. O que eu pensava era muito natural, e não era impróprio<br />

<strong>de</strong> vós nem <strong>de</strong> mim. Pensava que, em vez dos sentimentos ferozes que ten<strong>de</strong>s mais <strong>de</strong> uma vez manifestado,

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