O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
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Certamente o plano dos forasteiros ficaria abaixo das suas ambições se nele entrasse o pensamento <strong>de</strong> se<br />
hostilizar a nobreza dos arredores da vila <strong>de</strong> fresco criada. Tudo ao contrario faz crer que eles conspiram<br />
contra a nobreza <strong>de</strong> toda a província, porque sem a <strong>de</strong>struição total <strong>de</strong>la não po<strong>de</strong>rão ficar senhores <strong>de</strong> todo<br />
país. Não moro na vila <strong>de</strong> Goiana, mas lá mesmo no meu mato soube que o ouro dos mascates andava por<br />
aqui nas mãos <strong>de</strong> baixos comissários.<br />
- Ten<strong>de</strong>s razão, ten<strong>de</strong>s razão - disse Manoel <strong>de</strong> Lacerda. O que dizeis é verda<strong>de</strong>.<br />
Antes <strong>de</strong> montar a cavalo para vir a esta reunião, disse-me um dos meus lavradores que soubera terem sido<br />
distribuídos em Goiana, don<strong>de</strong> chegava, 14,000 cruzados para a compra <strong>de</strong> gente que apoie a causa dos<br />
mercadores. Se isto é verídico...<br />
- É verídico - disseram muitos dos que se achavam presentes.<br />
Se assim é, prosseguiu Matias Vidal, não será imprudência <strong>de</strong>sampararmos nossas casas, que, privadas <strong>de</strong><br />
nosso encosto e sem nenhum meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, visto que teremos <strong>de</strong> levar conosco as nossas escravaturas,<br />
ficarão expostas a gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sgraças.<br />
A estas palavras, que saíram fracamente dos lábios <strong>de</strong> Matias Vidal, como <strong>de</strong>ntre duas pedras caem gotas <strong>de</strong><br />
água nativa, seguiu-se um momento <strong>de</strong> silencio. Nelas vinha um cunho <strong>de</strong> madura prudência que abatia e<br />
resfriava os ímpetos e os éstos dos prece<strong>de</strong>ntes oradores. Aqui estava o pai <strong>de</strong> família, o agricultor, o matuto,<br />
sem exclusão do patriota. A inspiração sensata, a lúcida intuição que adivinhava os perigos próximos, ao<br />
mesmo tempo que via os remotos já <strong>de</strong>scobertos, tomaram o lugar aos assomos da soberba <strong>de</strong> João da Cunha,<br />
da valentia <strong>de</strong> Lacerda, da ardência <strong>de</strong> Bezerra, e apresentaram a solução natural do grave problema que os<br />
trazia ali reunidos.<br />
- Ela é verda<strong>de</strong> - disse primeiro o ex-alcai<strong>de</strong>-mór, como quem caia em se e via agora <strong>de</strong> todo clara a situação<br />
há pouco envolvida em <strong>de</strong>nsas trevas. Junto, em torno <strong>de</strong> nós, mandatários disfarçados espreitam os nossos<br />
passos para os <strong>de</strong>nunciarem aos mandantes, nossos inimigos.<br />
- Que diz você a isto, irmão André? Perguntou Luiz Vidal a André Cavalcanti, que atento ouvira os vários<br />
conceitos dos conferentes.<br />
- Digo que o nosso primeiro empenho <strong>de</strong>ve consistir em tratarmos da nossa própria <strong>de</strong>fesa. Estou por isso<br />
inteiramente <strong>de</strong> acordo com o parecer <strong>de</strong> Matias Vidal. Quem sabe se <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> poucas horas não teremos <strong>de</strong><br />
haver-nos com revolta idêntica á do Recife?<br />
- Nem <strong>de</strong>vemos esperar coisa diferente - disse Jorge Cavalcanti.<br />
- A que fim, senão a este, mandaram para cá os mascates o seu ouro? Observou José <strong>de</strong> Barros.<br />
Ontem corria nas lojas e tabernas <strong>de</strong> Goiana - disse Manoel <strong>de</strong> Lacerda, que um motim se preparava contra a<br />
nobreza. Antonio Coelho, cuja audácia todos nós sabemos, nunca se mostrou tão <strong>de</strong>rramado em arrogancias e<br />
insultos. De noite houve ajuntamento em sua loja, ajuntamento que só se <strong>de</strong>sfez quando já era noite alta e<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos urras, que ressoaram nas vizinhanças. Certo está Antonio Coelho incumbido <strong>de</strong> dirigir o<br />
movimento.<br />
- Bom será que o não percamos <strong>de</strong> vista, disse João da Cunha.<br />
Hoje <strong>de</strong> manhã, passando eu pela frente <strong>de</strong> sua casa, vi-o fazendo gestos no balcão. Estava, ao parecer, ébrio;<br />
não tinha curtido <strong>de</strong> todo o vinho que bebera na véspera, porque lhe ouvi palavras insultuosas que me iam<br />
lançando fora do caminho da prudência.<br />
- Que disse ele, Cosme Bezerra? Interrogou o sargento-mór.<br />
Suas insolências tinham por objeto a vossa própria pessoa. <br />
- Porque?porque? perguntou o sargento-mór, tomado <strong>de</strong> súbita comoção, e fazendo-se lívido. Que historia<br />
contou o vilão?<br />
- Contou que o mascate tinha sido assassinado por se queixar <strong>de</strong> lhe não terem pago certa quantia.<br />
João da Cunha, sem o querer, tinha-se levantado.<br />
- Querem saber como foi o caso? A mulher <strong>de</strong> um morador chamou o labrego para lhe comprar não sei que<br />
bugigangas, <strong>de</strong> que ele saiu pago. Mas como vinha tonto, <strong>de</strong>pressa esqueceu-lhe que tinha recebido a<br />
respectiva importância. Hei-lo que volta e começa <strong>de</strong> exigir novo pagamento; e porque ninguém saiu a dar-lhe<br />
mais dinheiro, a todos chamou ladrões, sem exceção do senhor do engenho. Dois negros foram-lhe ao<br />
encontro e castigaram, sem que <strong>de</strong> ninguém tivessem recebido or<strong>de</strong>m para isso, a ousadia do mascate. Este<br />
caiu e não se levantou mais. No outro dia vieram dizer-me que amanhecera um homem morto na estrada. Foi<br />
então que soube do ocorrido. Castiguei os escravos, e man<strong>de</strong>i sepultar o morto, não na bagaceira, mas na<br />
capela. Se o não sepultaram on<strong>de</strong> eu disse, não lhe fizeram injustiça; os animais do campo enterram-se nos<br />
monturos. Mas <strong>de</strong>ixemos a um lado esse vil mascate, e tratemos do que nos <strong>de</strong>ve merecer mais atenção. Que