O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Joaquina não apareceu senão mais tar<strong>de</strong>. Estava na cozinha preparando a <strong>de</strong>liciosa canjica, que é o primeiro<br />
prato das mesas gran<strong>de</strong>s e pequenas do norte nessa noite <strong>de</strong> tão formosas e prazenteiras tradições.<br />
Não o afamado bolo <strong>de</strong> S. João, que só nas mesas ricas ou ao menos abastadas costuma aparecer, mas uns<br />
bolos <strong>de</strong> mandioca estavam assando no forno, e por terem sido feitos pelas duas filhas <strong>de</strong> Victorino mereciam<br />
a honra <strong>de</strong> ser visitados por elas enquanto não ficavam no tom <strong>de</strong> apresentar-se.<br />
Entre os hospe<strong>de</strong>s apontavam-se mais <strong>de</strong> meia dúzia, que eram afamados tocadores <strong>de</strong> viola e guitarra.<br />
Alguns <strong>de</strong>les temperavam já os seus instrumentos para dar principio ao samba.<br />
No pátio, junto da fogueira, uns meninos <strong>de</strong>scalços, <strong>de</strong> camisas compridas, ro<strong>de</strong>avam Saturnino, que, <strong>de</strong><br />
quando em quando, cantarolando e pulando <strong>de</strong> alegria, <strong>de</strong>scarregava um clavinote, em honra do santo<br />
folgazão. A estes tiros, soltados no terreiro, respondiam outros, também <strong>de</strong> armas <strong>de</strong> fogo, com que habitantes<br />
dos vales e da beira dos caminhos davam noticias suas. Trocavam assim os vizinhos, através das distancias,<br />
seus cumprimentos e as <strong>de</strong>monstrações do seu inocente prazer.<br />
Aquele que nunca saiu da corte, on<strong>de</strong> os regozijos públicos se vestem <strong>de</strong> fitas, sedas, ban<strong>de</strong>iras, arcarias <strong>de</strong><br />
sarrafos pintados, iluminações graciosas, fogos <strong>de</strong> artificio, apresentando o conjunto vistosas cores,<br />
caprichosas formas, elegantes perfis, não imagina que sem este aparato <strong>de</strong>slumbrante, e unicamente com a<br />
matéria prima que oferece a natureza, possam preparar-se <strong>de</strong>leitosos momentos para os espíritos mais difíceis<br />
<strong>de</strong> contentar. Não é outra porém a verda<strong>de</strong>. Ilumina-se com uma fogueira o pátio da casa, no qual se vê uma<br />
laranjeira florida, uma mangueira copada, um cajueiro ramalhudo. Enche-se o pátio do riso argentino das<br />
crianças, do assobio dos moleques, dos sons da viola, das saudosissimas toadas do matuto cantador, das<br />
harmonias melancólicas da gaita tocada pelo negro do engenho. Tanto basta para que voe o tempo com a<br />
rapi<strong>de</strong>z do raio e a satisfação das gentes <strong>de</strong> campo nada tenha que invejar a que trazem aos habitantes das<br />
cida<strong>de</strong>s as musicas <strong>de</strong> pancadaria, os fogos artificiais, os esplendores agradáveis a vista com que celebram<br />
suas alegrias.<br />
Meia hora não se tinha ainda passado <strong>de</strong>pois da chegada <strong>de</strong> Lourenço, a casa <strong>de</strong> Victorino, quando nadava<br />
com os <strong>de</strong>mais em um mar <strong>de</strong> in<strong>de</strong>scritível contentamento. Todos os <strong>de</strong> casa e até os <strong>de</strong> fora já tinham visto a<br />
sombra <strong>de</strong> suas cabeças ao acen<strong>de</strong>r das fogueiras, sinal <strong>de</strong> que não morreriam aquele ano. Achando-se fora <strong>de</strong><br />
duvida este ponto, não havia razão para que a alegria não fosse a primeira senão a única expressão <strong>de</strong> todos os<br />
semblantes. Por isso uns gracejavam, outros riam, outros tocavam seus instrumentos, e todos comiam e<br />
bebiam no seio da plenissima confiança que caracterizava aquelas épocas como se foram todos membros da<br />
mesma família.<br />
Marianinha porém, no meio do prazer imenso <strong>de</strong> que cada um tinha o seu quinhão, <strong>de</strong>ixava-se tomar<br />
naturalmente <strong>de</strong> ligeira sombra <strong>de</strong> tristeza, não obstante <strong>de</strong>ver ser em verda<strong>de</strong> o seu quinhão <strong>de</strong> prazer muito<br />
mais avultado do que o <strong>de</strong> qualquer dos convivas.<br />
Não era verda<strong>de</strong>iramente uma sombra <strong>de</strong> tristeza a que anuviava interpoladamente o seu rosto iluminado pela<br />
suave pureza da juventu<strong>de</strong>. Era, sim, a asa pardacenta <strong>de</strong> receio traiçoeiro ou <strong>de</strong> duvida intima a causa do<br />
intermitente eclipse daqueles olhos negros e vivos, daquele sorriso franco e loução, daquela voz afinada pelas<br />
harpas dos sabiás e dos curiós que cantavam ao nascer e ao pôr do sol nas ramalhudas pitombeiras do quintal.<br />
Quando seus olhos se encontravam com os <strong>de</strong> Lourenço, a nuvem se a<strong>de</strong>lgaçava e <strong>de</strong>svanecia como fumo, e o<br />
brilho da face, antes escasso, parecia agora o <strong>de</strong> uma constelação. Se o filho <strong>de</strong> Francisco dirigia a Bernardina<br />
as mesmas palavras, os mesmos gracejos que tinham feito reacen<strong>de</strong>r-se no rosto <strong>de</strong> Marianinha a graça, a vida<br />
interrompida quando não eram outros mais languidos e ternos, nova interrupção vinha cortar ai a ventura<br />
recentemente morta e logo renascida. Havia naquele coração <strong>de</strong> mulher o ciúme antes mesmo do amor; havia<br />
o receio <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a felicida<strong>de</strong> que aliás não existia senão no seu <strong>de</strong>sejo, e na promessa que lhe fizera<br />
Francisco.<br />
Marianinha <strong>de</strong> feito enganava-se. Toda ela era afetos por Lourenço; mas este não tinha para ela especiais<br />
atenções.<br />
Mas, fosse engano, ilusão ou infantil confiança, esse amor fantástico, i<strong>de</strong>al, impossível talvez enchia-lhe o<br />
coração <strong>de</strong> suavíssimos fulgores, a alma <strong>de</strong> todos os perfumes e cânticos do paraíso terreal, <strong>de</strong> que ela tinha<br />
uma ligeira noticia por ouvir, quando era menina, a historia do princípio do mundo a uma velhota das bandas<br />
<strong>de</strong> Nossa-Senhora-do-ó. Quando na manhã seguinte ela foi achar murcho o <strong>de</strong>nte d’alho que enterrara na<br />
horta ao acen<strong>de</strong>r da fogueira, o que importava profético sinal <strong>de</strong> que Lourenço não casaria com ela, os olhos<br />
se lhe encheram <strong>de</strong> lágrimas. Supersticiosa e crédula, como é a mulher em geral e a filha do povo em<br />
particular, a pobre menina por um triz não <strong>de</strong>u consigo em terra, tão gran<strong>de</strong> foi o golpe que atravessou seu<br />
coração.<br />
Não aconteceu já o mesmo a Bernardina. Para esta noite <strong>de</strong> S.João foi uma gran<strong>de</strong> aurora sem intervalos. Suas<br />
aspirações sendo menos altas, a sorte apressou-se em cercá-las <strong>de</strong> risonhos anuncios. Era <strong>de</strong> feito mo<strong>de</strong>sto o