O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
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livi<strong>de</strong>z passou pelas faces <strong>de</strong>stes últimos. Uma só idéia, uma suspeita cruel que lhe atravessara o cérebro, fez<br />
chegar ao rosto <strong>de</strong>les a sombra <strong>de</strong> sua asa negra.<br />
Puseram os escravos novas escorvas nos mosquetes, que levaram novamente aos orifícios das portas. À voz<br />
<strong>de</strong> - fogo! - as escorvas ar<strong>de</strong>ram, mas, como da primeira vez, nenhuma arma disparou seu tiro.<br />
Fora <strong>de</strong> si, o sargento-mór vai cair <strong>de</strong> um pulo junto <strong>de</strong> Germano, enquanto Filipe Cavalcanti e Luiz Vidal,<br />
<strong>de</strong>sembainhando suas espadas, se colocam em atitu<strong>de</strong> ameaçadora diante dos outros escravos.<br />
- Negro infame, quero saber o que têm estas armas. Confessa a verda<strong>de</strong>, senão te atravesso da outra banda.<br />
João da Cunha parecia uma visão infernal. Todos os músculos do rosto, as mais <strong>de</strong>licadas linhas <strong>de</strong> seus olhos<br />
<strong>de</strong>spediam duras e mudas ameaças, que falavam mais claro do que seus gestos e expressões violentas. Senhor,<br />
as armas estão molhadas, respon<strong>de</strong>u Germano. Não fui eu que as molhei, foi ele; mas já pagou.<br />
- Molhadas as armas! exclamou Filipe. Traidores!<br />
- Ele quem? Ele quem? Dize já quem foi o autor <strong>de</strong>ste crime.<br />
- Moçambique.<br />
Eis o que se tinha passado <strong>de</strong>pois da subida do Roberto e dos seus companheiros para o andar superior.<br />
Moçambique chegou-se a Germano e lhe disse:<br />
- Que esperas, moleque? Daqui a pouco o branco vem chamar-nos para o sobrado, e nós levamos as armas<br />
enxutas. Bota logo água <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>las.<br />
- Cala a boca, tio Moçambique. Estás doido? Água <strong>de</strong>ntro das armas! Para que fim?<br />
- Ah! Tão <strong>de</strong>pressa te esqueceste da promessa que fizeste a seu Pedro <strong>de</strong> Lima?<br />
- Eu nada prometi, Moçambique, eu nada prometi do que você está inventando ai.<br />
- Pois já te não lembras da conversa que tiveste ontem <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> no mucambo?<br />
E que prometi eu, negro velho tonto? Melhor será que você cale sua boca. Calou Moçambique a boca um<br />
momento, mas seu espirito embrutecido, seu interesse, que sua ignorância o fazia supor muito bem amparado<br />
pelas promessas <strong>de</strong> Pedro <strong>de</strong> Lima, alteou <strong>de</strong>ntro em sua mente cada vez mais as vozes falazes e persuasivas.<br />
O negro <strong>de</strong>u uma volta, como para disfarçar a intenção serpentina, dirigiu-se ao canto on<strong>de</strong> estavam<br />
encostadas as armas, e começou a esvaziar no cano <strong>de</strong> cada uma o coco, que enchia no pote d’água <strong>de</strong>stinada<br />
a matar-lhes a se<strong>de</strong>.<br />
Germano <strong>de</strong>u pela operação, no momento precisamente em que Moçambique molhava o ultimo mosquete.<br />
Correr ao negro velho, tomar-lhe a arma da mão, exprobra-lo, foram atos que o moleque praticou em um<br />
momento.<br />
- Tio Moçambique! Você sempre fez o que queria?! exclamou na realida<strong>de</strong> aterrado Germano.<br />
- Fiz o que tu prometeste, mas não tiveste coragem para fazer, respon<strong>de</strong>u Moçambique. Negão safado! Tu<br />
ouviste eu prometer alguma coisa?<br />
Ouvi, sim. E se tu quiseres agora negar, eu tudo contarei ao senhor - disse Moçambique, dando mostras <strong>de</strong><br />
querer envolver em sua queda o parceiro.<br />
Germano era fino. Viu <strong>de</strong> um lance d’olhos todo o horror da situação, toda a imensida<strong>de</strong> do seu infame<br />
procedimento. Compreen<strong>de</strong>u que se o senhor-<strong>de</strong>-engenho saísse daquele aperto e viesse a ter conhecimento<br />
do que se passara no mucambo, a forca seria o seu fim, se não fosse a morte nos açoites. Então lembrou-lhe<br />
uma idéia, única que o podia salvar do abismo à borda do qual cambaleava mais morto do que vivo. Era<br />
<strong>de</strong>struir a única testemunha da sua entrevista com Pedro <strong>de</strong> Lima. Morto Moçambique, estaria ele livre da<br />
responsabilida<strong>de</strong> que o negro queria repartir com ele, e po<strong>de</strong>ria até, se a vitoria pertencesse aos mascates tão<br />
completamente como figuraria Pedro <strong>de</strong> Lima, exigir <strong>de</strong>ste o preenchimento da promessa feita. Tanto que esta<br />
or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> idéias se acentuou bem em sua mente, para o que não foi preciso mais do que um instante, o<br />
moleque puxou resolutamente do facão que consigo trazia, e com ele traspassou o parceiro.<br />
Tendo contado pela rama esta fatal acontecimento a João da Cunha, Germano para dar inteira autorida<strong>de</strong> ao<br />
que dizia, indicou o canto do armazém on<strong>de</strong> se achava morto, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma poça <strong>de</strong> sangue ainda quente, o<br />
negro que punha sentido nas carvoeiras.<br />
O sargento-mór soltou então o moleque, dizendo-lhe estas palavras:<br />
- Em recompensa da ação que praticaste, Germano, dou-te a liberda<strong>de</strong>. Do ora por diante já não és meu<br />
escravo, mas meu amigo. Estás forro.<br />
- Eu forro, eu livre senhor! exclamou, duvidoso ainda o negro, como quem não podia acreditar fosse senhor<br />
do sumo bem a que aspirava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que tivera o uso da razão, mas cuja posse só em sonho consi<strong>de</strong>rava<br />
possível.<br />
Estás livre. Palavra <strong>de</strong> João da Cunha. As lagrimas saltaram dos olhos do moleque, mas uma sombra,<br />
escurecendo-lhe o espirito e aguando o contentamento inefável que o repassava, volitou diante dos seus olhos.<br />
Esta sombra tinha a forma <strong>de</strong> um espectro agoureiro e medonho. Parecia com o negro morto, mas não era