O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
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<strong>de</strong>samparava as posições, abaixava as armas à voz <strong>de</strong> um padre; e quando ele trovejava contra elas próprias,<br />
corriam medrosas a impedir, com suplicas e prantos, que lhe tirassem a vida.<br />
O jesuíta entretanto prosseguia assim a sua terrível jaculação.<br />
- Atirastes sobre a cruz do re<strong>de</strong>ntor. Estais por isso con<strong>de</strong>nadas às profundas dos infernos. Suspen<strong>de</strong>i,<br />
suspen<strong>de</strong>i, filha <strong>de</strong> Satanás, a vossa impieda<strong>de</strong>. A maldição <strong>de</strong> Deus pesará eternamente sobre vós, se<br />
ousar<strong>de</strong>s levantar ainda armas infernais para o lado on<strong>de</strong> está o símbolo da fé e da religião católica. Batei nas<br />
faces, mulheres ímpias. Pedi misericórdia a Deus. Misericórdia! Misericórdia! Exclamaram irresistivelmente<br />
todas as mulheres presentes. E suas mãos ainda quentes dos canos das armas, flagelaram, a modo <strong>de</strong><br />
impelidas por oculta e fatal força, as faces há pouco afogueadas, agora pálidas, senão lívidas.<br />
Um dos traços característicos daqueles tempos era a fé cega no padre e na sua doutrina. O sentimento<br />
religioso confundia-se com a superstição e <strong>de</strong>la recebia a influencia que ainda em nossos dias alenta no lar do<br />
rico e do pobre, do pequeno e do gran<strong>de</strong>, crenças <strong>de</strong>letérias e hábitos fatalissimos. D. Damiana, educada no<br />
seio da família católica, ao paladar da fé antiga - misto <strong>de</strong> sombra e luz, como a nuvem que no <strong>de</strong>serto guiava<br />
o povo <strong>de</strong> Israel - sentia-se fraca diante do sacerdote, não obstante ter-se mostrado um momento antes brava,<br />
senão temerária, diante das forças e das armas rebel<strong>de</strong>s, porque ela estava acostumada a ver no padre o<br />
representante <strong>de</strong> Deus na terra; a consi<strong>de</strong>rar suas palavras como sentenças do código divino.<br />
Mas o sargento-mór, que já não pensava assim, ergueu o clavinote e disparou-o. A bala foi bater nos pés da<br />
cruz, e arrancar uma lasca <strong>de</strong> pedra. No mesmo instante uma fila <strong>de</strong> sangue vivo escorre do lugar on<strong>de</strong> a bala<br />
<strong>de</strong>ixara profunda e alongada ferida. Viram todos o sangue <strong>de</strong>scer pela pedra. Era o do padre Henrique, cujo<br />
corpo caíra traspassado aos pés do cruzeiro.<br />
- Meu Deus, que horror! Exclamou d. Damiana. Estamos perdidos. Deus não há <strong>de</strong> ser mais por nós.<br />
E inclinou sobre as mãos, pequenas <strong>de</strong> mais para ocultarem o horror que lhe vinha do intimo, o rosto<br />
<strong>de</strong>sfigurado e abatido.<br />
O senhor-<strong>de</strong>-engenho, como se sua própria obre tivesse excedido a medida da sua intenção, teve por<br />
momentos os olhos, pasmos e <strong>de</strong>svairados, sobre o traço vermelho que <strong>de</strong>screvera um como hieróglifo ou<br />
símbolo infernal na pedra secular do símbolo santo.<br />
Nesse momento diziam da rua:<br />
- O tiro, que o matou, veio do sobrado on<strong>de</strong> estão a mulher e as negras do malvado. Sim, sim, veio <strong>de</strong> cima;<br />
veio.<br />
- Foi a escopeteira que atirou.<br />
- Foi ela, foi ela. Morra a escopeteira!<br />
- Morra, morra. Ao sobrado, ao sobrado! Gritaram os fra<strong>de</strong>s em torno do cadáver do jesuíta. Ao sobrado!<br />
respon<strong>de</strong>u a multidão.<br />
XXVII<br />
O sobrado foi fortemente atacado, mas à força exterior opuseram os que estavam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le heróica<br />
resistência, impossível <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver-se.<br />
Nos últimos momentos os negros, dirigidos por Germano, tinham-se batido quais feras. Prometera-lhes o<br />
sargento-mór a liberda<strong>de</strong> a todos, e tanto bastou para que os guaribas lutassem como se foram leões.<br />
Mas Germano <strong>de</strong>via ser punido da sua perfídia. Defen<strong>de</strong>ndo a facão e a chuço com os parceiros uma das<br />
portas que os invasores tinham logrado romper, ele caíra traspassado <strong>de</strong> golpes. Com o sangue e a vida<br />
resgatara a culpa.<br />
Tanto que consi<strong>de</strong>rou perdida a esperança <strong>de</strong> salvação, o sargento-mór pediu a Filipe Cavalcanti e a Luiz<br />
Vidal que pusessem a salvo sua mulher.<br />
- E porque não nos salvaremos todos? Inquiriu um <strong>de</strong>les. Roberto podia resistir com os negros que restam,<br />
ainda alguns minutos. Teremos tempo <strong>de</strong> ganhar a cavalariça. Tomaremos os animais e ficaremos fora do<br />
alcance dos malvados.<br />
- Desamparar a minha casa seria uma covardia, que eu nunca havia <strong>de</strong> perdoar-me, disse o sargento-mór. I<strong>de</strong><br />
vós. Correi, correi, senhores. Salvai-me Damiana, e não vos importais comigo. Hei <strong>de</strong> resistir até à minha<br />
<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira. Talvez que nesse entrementes chegue Cosme.<br />
Mal tinha acabado estas palavras que po<strong>de</strong>riam consi<strong>de</strong>rar-se inspiradas pela intuição do momento final,<br />
quando as outras portas que ainda estavam <strong>de</strong> pé, caíram <strong>de</strong>baixo do peso dos machados e alavancas<br />
fortemente vibrados pela turba se<strong>de</strong>nta <strong>de</strong> vingança. Na primeira linha dos atacantes viam-se, movendo os<br />
terríveis instrumentos, diferentes fra<strong>de</strong>s carmelitas, que assim entendiam <strong>de</strong>ver ressarcir a perda do jesuíta.