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O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

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Eis os versos que a matutinha cantou por entre aplausos repetidos e frenéticos:<br />

Benzinho, quando te fores,<br />

Escreve-me do caminho;<br />

Se não achares papel,<br />

Nas asas <strong>de</strong> um passarinho.<br />

Assim, assim, Bernardina - disseram três ou quatro convivas, enfeitiçados do <strong>de</strong>sembaraço, já conhecido, da<br />

filha do dono da casa.<br />

A rapariga, requebrando-se senhorilmente, prosseguiu relanceando os olhos para o namorado, que a esse<br />

tempo, já tinha <strong>de</strong>samparado o terreiro e encostado a um canto o clavinote:<br />

Da boca faze o tinteiro,<br />

Da língua pena aparada,<br />

Dos <strong>de</strong>ntes letra miúda,<br />

Dos olhos carta fechada.<br />

Oh, que rapariga can<strong>de</strong>ia! exclamou o Ignacio Macambira, sem po<strong>de</strong>r conter o entusiasmo, acrescentado pela<br />

cana.<br />

Bernardina prosseguiu:<br />

Manjericão ver<strong>de</strong> cheira,<br />

Ele seco cheira mais;<br />

Mulher que se fia em homem<br />

Anda sempre dando ais.<br />

Eu <strong>de</strong> cá e tu <strong>de</strong> lá,<br />

Fica um rio <strong>de</strong> permeio;<br />

Tu <strong>de</strong> lá dás um suspiro,<br />

Eu <strong>de</strong> cá suspiro e meio.<br />

Meu coração é <strong>de</strong> vidro,<br />

Feito <strong>de</strong> mil travações:<br />

Com qualquer coisa se quebra,<br />

Não atura ingratidões.<br />

Longo tempo levou Bernardina a cantar, ora variando, ora repetindo as letras ao paladar dos circunstantes.<br />

No mais aceso do samba, quando não só se ouviam os sons das violas, mas também os ásperos rechinar das<br />

costas da faca sobre a botija segundo praticam em ajuntamentos tais; quando os aplausos se manifestavam por<br />

meio <strong>de</strong> gritos e gargalhadas estri<strong>de</strong>ntes; quando não se dançava só o cocô e o baiano, mas uma mistura <strong>de</strong><br />

todas as danças populares com o acréscimo da fantasia <strong>de</strong> cada um, escaldada pelos vapores espirituosos;<br />

quando enfim era tudo algazarra, <strong>de</strong>rriços pouco <strong>de</strong>centes, <strong>de</strong>monstrações menos dignas, apareceu um novo<br />

conviva no meio da multidão. Era Francisco, o qual, <strong>de</strong>pois da entrega das cartas no engenho, viera em busca<br />

do filho, pelo motivo que adiante saberemos.<br />

Não podia o matuto chegar mais oportunamente àquele ponto. No momento exatamente em que ele se fez ver<br />

por entre a matutada que enchia a salinha, sentiu Lourenço bater-lhe no ombro pesada mão, que o obrigou a<br />

voltar-se, a fim <strong>de</strong> saber quem era que lhe fazia tão estranho cumprimento. O rapaz reconheceu o Tunda-<br />

Cumbe.<br />

Em poucas palavras poremos o leitor a par <strong>de</strong>ste sujeito, que tão importante papel <strong>de</strong>sempenhou na Guerrados-mascates.<br />

E para que o retrato venha com o cunho <strong>de</strong> severa autenticida<strong>de</strong>, preencheremos a nossa<br />

promessa trasladando aqui as próprias palavras em que um cronista pernambucano o <strong>de</strong>screveu para<br />

conhecimento da posterida<strong>de</strong>. < Este sujeito era um homem rústico e grosseiro, <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> já maior, que do<br />

reino <strong>de</strong> Portugal tinha há anos vindo para esta terra, trazendo da sua, por divisa, uma gran<strong>de</strong> cutilada no<br />

rosto, ou para que a se não <strong>de</strong>sconhecesse, ou para que por ela fosse conhecido; mas diziam que por usar do<br />

oficio <strong>de</strong> parteira, e para disfarçá-la <strong>de</strong> algum modo, conservava os seus bigo<strong>de</strong>s, ou mustachos, em tempo<br />

que ninguém fazia caso <strong>de</strong>les. Buscando meios <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r acomodar-se, fez em Goiana assento <strong>de</strong> feitor, por<br />

seu salário em casa do sargento-mór Matias Vidal, a fim <strong>de</strong> no serviço dirigir os negros; mas estes,<br />

conspirando-se contra ele em certo dia, lhe <strong>de</strong>ram uma pista <strong>de</strong> pancadas que na etiópica língua chamam<br />

Tunda, e o lugar on<strong>de</strong> lhe <strong>de</strong>ram chama-se Cumbe. Como se fez o caso publico, por antonosia lhe chamavam<br />

o Tunda-Cumbe, e sendo por este nome <strong>de</strong> todos conhecido, como quem faz do sambenito gala, quis do modo<br />

como era apelidado, apelidar-se. Daí se foi para a freguesia da Várzea, e nela esteve com o mesmo exercício<br />

<strong>de</strong> feitor do Capitão Lourenço do Cunha Moreno, e <strong>de</strong>pois tornou para Goiana, e se fez almocreve <strong>de</strong> peixe,<br />

indo, com uma besta, a buscá-lo pelas praias, e pelas portas dos moradores a vendê-lo: nesta or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> vida se

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