O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
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À vista <strong>de</strong>sta cena extrema, não havia mais que hesitar. Os dois fidalgos, dois sós, porque João da Cunha<br />
ficava embaixo, resistindo ainda, lutando sempre, atiraram-se <strong>de</strong> escada acima a fim <strong>de</strong> tentarem a fuga, com<br />
a senhora-<strong>de</strong>-engenho, pelos fundos do sobrado, única comunicação para uns casebres com frente para a Ruado-meio.<br />
Mas qual não foi o seu espanto e tristeza, quando se encontraram com as mucamas <strong>de</strong> d. Damiana<br />
que, espavoridas e chorosas, corriam <strong>de</strong> escada abaixo pedindo socorro?<br />
Uma malta, não inferior a cinquenta homens, entrando justamente pela parte da casa por on<strong>de</strong> Felipe e Luiz<br />
tencionavam escapar-se, tinha já tomado o andar superior. A senhora?! On<strong>de</strong> está a senhora?! perguntaram os<br />
fidalgos, passados <strong>de</strong> impaciência e aflição in<strong>de</strong>scritível.<br />
- Não sei - respon<strong>de</strong> uma das escravas.<br />
- Fugiu, respon<strong>de</strong> outra.<br />
- Trancou-se por <strong>de</strong>ntro em um quarto, - acrescenta a terceira.<br />
- Negras do diabo! exclamou Luiz Vidal.<br />
E atira-se com Felipe, <strong>de</strong>sesperado, agoniado, na direção que levava. A indignação e o vexame faiscavam-lhes<br />
dos olhos. Mas do topo da escada não passaram eles. Parte da multidão veio ao seu encontro e embargou-lhes<br />
o caminho.<br />
- Afastai-vos miseráveis! gritou Luiz Vidal. Vou a salvar uma dona honrada. Para o lado, vilões! Para o lado.<br />
- A quem vais tu salvar, mazombo infame! perguntou-lhe o sujeito que vinha na frente da onda.<br />
Os fidalgos reconheceram o que lhes dirigira este apodo acerbo. Era o Belchior.<br />
- Será uma escopeteira? perguntou outro sujeito em quem eles reconheceram Manoel Rodrigues - o<br />
taverneiro.<br />
- A escopeteira! A escopeteira! articulou o terceiro com ares <strong>de</strong> mofa. Está nas unhas do nosso comandante, o<br />
bravo Antonio Coelho.<br />
Quem assim falava era o alfaiate Manoel Gau<strong>de</strong>ncio.<br />
Coelho, <strong>de</strong> feito, entrando no sobrado do momento em que <strong>de</strong> fora ainda se pedia o coração, a cabeça <strong>de</strong> d.<br />
Damiana em paga da vida do fra<strong>de</strong>, correu à senhora-<strong>de</strong>-engenho e disse:<br />
- Senhora, senhora minha, se não vos entregais em minhas mãos, mata-vos a multidão!<br />
E dizer-lhe estas palavras foi o mesmo que tomar pela mão a senhora-<strong>de</strong>-engenho, atravessar com ela por<br />
entre o seu próprio séquito, acomodando os mais exaltados e exigentes, com a promessa <strong>de</strong> que ela pagaria a<br />
sua culpa às justiças, e <strong>de</strong>saparecer por on<strong>de</strong> havia entrado na casa do sargento-mór.<br />
Irritados pelo pouco caso e mofa que mostravam os invasores, os fidalgos precipitam-se contra eles, resolutos<br />
a abrir caminho por cima <strong>de</strong> cadáveres. Seus golpes não conseguem mais do que ferir alguns mascates.<br />
Acen<strong>de</strong>-se logo pronta e terrível represália. Tomam-nos às mãos, arrebatam-lhes as armas, <strong>de</strong>scarregam sobre<br />
eles pancadas e cutiladas, assacam-lhes mil impropérios.<br />
Então já as duas multidões, pondo-se em comunicação pela escada, formavam um só corpo, uma como<br />
serpente imensa, irrequieta, assanhada, que se esfregava pelas pare<strong>de</strong>s, sacudia-se pelas salas, sumia-se pelos<br />
quartos a <strong>de</strong>ntro, penetrando nos pontos mais secretos da casa do fidalgo, enquanto este <strong>de</strong>sarmado, ferido,<br />
coberto <strong>de</strong> baldões, via-se com seus próprios escravos entre os primeiros cabos da força <strong>de</strong> Luiz Soares, e era<br />
apontado por ele, que não ocultava a sua satisfação, como o seu primeiro troféu.<br />
De todas as que estavam na casa <strong>de</strong> João da Cunha, só uma pessoa po<strong>de</strong> escapar-se com sua liberda<strong>de</strong>. Foi<br />
Marcelina, que correra, não por fugir, senão por acompanhar d. Damiana, no momento em que com ela<br />
rompia Antonio Coelho por entre os seus partidários.<br />
- Hei <strong>de</strong> ir com ela até ao infinito! Dizia a cabocla correndo após a senhora-<strong>de</strong>-engenho. Não hei <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
vista a pobre senhora. Meu Deus! Como tudo se mudou!<br />
Mas a Coelho não fazia conta ser acompanhado por essa terrível testemunha, e cedo achou um meio <strong>de</strong> afastála<br />
<strong>de</strong> suas pisadas, por mais que a senhora-<strong>de</strong>-engenho pedisse <strong>de</strong>pois que a <strong>de</strong>ixasse passar. Para penetrar no<br />
quintal do sobrado, tinha Coelho feito caminho por um dos casebres que abriam sobre a Rua-do-meio. O<br />
mascate estugou os passos, atravessou o casebre, e, quando se achou com sua presa na rua, trancou pelo lado<br />
<strong>de</strong> fora a porta. Marcelina não era mulher a quem semelhante obstáculo cortasse a carreira em que ia. Mas<br />
quando, <strong>de</strong>simpedida a saída a po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> esforço e violência, ela passou da outra banda, Coelho e d. Damiana<br />
tinham <strong>de</strong>saparecido.<br />
- Pobre senhora! exclamou a cabocla em lagrimas. Que não fará com ela o bárbaro?<br />
Seriam então oito horas da manhã. O dia, risonho e esplendido, apareceu aos olhos da cabocla como a<br />
carranca <strong>de</strong> um malvado. A viração, que brincava com as folhas dos mamoeiros dos quintais, soou a seus<br />
ouvidos como a ameaça <strong>de</strong> um assassino, o riso infernal <strong>de</strong> um <strong>de</strong>mônio.<br />
Marcelina tinha até certo ponto razão <strong>de</strong>ixando formar-se em seu espirito esta ilusão mentirosa.<br />
Era geral o <strong>de</strong>stroço, lúgubre o espetáculo que seus olhos <strong>de</strong>scobriram na rua. Homens <strong>de</strong> feia catadura