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O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

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XXIII<br />

Jeronimo Paes mostrava Ter quarenta anos. As soalheiras que apanhava em suas freqüentes jornadas para<br />

Pedras-<strong>de</strong>-fogo a comprar gado e para o Recife a recendê-lo, tinham-lhe dado ao moreno do rosto e das mãos<br />

o trigueiro carregado que o fazia parecer homem <strong>de</strong> cor. Trazia o cabelo cortado rente e a barba inteira.<br />

Esta era negra, espessa e algum tanto hirsuta. Em seu rosto liam-se a energia, a firmeza e a tenacida<strong>de</strong> do<br />

tribuno. A fronte, estreita no alto, alargava-se para os olhos, que eram pequenos, mas vivos e avermelhados. O<br />

nariz tinha o quer que era do bico da arara.<br />

Jeronimo enviuvara meia dúzia <strong>de</strong> anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> casado. Ficaram-lhe três filhos, a saber Justino, Miguel e<br />

Victor, os quais ao tempo <strong>de</strong>sta historia viviam com certa folga <strong>de</strong> meios, que eqüivalia à abastança, ou<br />

melhor à in<strong>de</strong>pendência. Além <strong>de</strong>stes, já senhores <strong>de</strong> si, tinha Jeronimo em sua companhia a caçula, por nome<br />

Josefa. Em casa chamavam-lhe Zefinha.<br />

Não era ela nem fei nem bonita, nem alta nam baixa, nem muito morena nem muito clara. Era um todo<br />

correto, proporcionado e como feito <strong>de</strong> propósito para existir justamente na burguesia. Tinha os cabelos<br />

corridos e acastanhados, os olhos pretos e algum tanto caídos, o sorriso engraçado, mas sem o colorido, sem o<br />

reflexo in<strong>de</strong>finível que acusa louras esperanças, sonhos purpurinos, anelos vagos mas não <strong>de</strong> todos cegos,<br />

férvido sentimento em quem o sorri.<br />

Sua instrução era vulgar, e a falta dos conhecimentos morais, necessários à mulher por honra sua e segurança<br />

do lar que possa ser chamada pelo <strong>de</strong>stino a formar mais tar<strong>de</strong>, ela a supria com o admirável bom senso e<br />

imensa brandura <strong>de</strong> coração, que a tornavam a primeira prenda da família.<br />

A preocupação principal <strong>de</strong> Jeronimo Paes, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ver seus três filhos casados, vivendo cada um do seu<br />

negocio, era achar um homem limpo que quisesse casar com Zefinha.<br />

Um Domingo, em que à porta do sitio que tinha nas proximida<strong>de</strong>s do Poço-do-rei, Jeronimo esperava pela<br />

filha para ir à missa na Soleda<strong>de</strong>, passou pela frente da casa Antonio Coelho. Como já se conheciam e eram<br />

até afreguesados, o marchante tirou conversa com o negociante e o teve preso ao pé <strong>de</strong> se até que Zefinha<br />

apareceu. Seguiram então os três para a vila, e juntos ouviram a sua missa, que teve para o jovem português e<br />

a cachopa goianista, particular, posto que vaga <strong>de</strong>licia.<br />

Zefinha voltou apaixonada. Sentiu durante todo o dia e ainda no seguinte certo bem estar, certa inquietação,<br />

certa harmonia, que lhe tiraram a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comer e o sono.<br />

Com o jovem português não se <strong>de</strong>u o mesmo. De noite já não lhe lembravam outras feições, outros<br />

feitiços, que os <strong>de</strong> d. Damiana, cuja imagem ele trazia permanentemente em seu olhos.<br />

Desse dia por diante começou Jeronimo a aproximar-se mais vezes <strong>de</strong> Coelho. Primeiro vieram os<br />

presentes, <strong>de</strong>pois as visitas, e por fim os convites para almoços ou jantares em sua casa. Dentro em pouco<br />

estavam amigos.<br />

Mas ao passo que o marchante não poupava finezas nem esforços para pren<strong>de</strong>r <strong>de</strong>finitivamente o<br />

negociante, lançava-lhe este outras contas muito diferentes. Gostava <strong>de</strong> Jeronimo, não <strong>de</strong>sgostava <strong>de</strong> Zefinha,<br />

mas seu ser moral revoava em torno da imagem da jovem senhora <strong>de</strong> engenho, como em torno <strong>de</strong> rosa gentil e<br />

<strong>de</strong>licada, revoa, absorvendo-lhe o saudável cheiro, namorado beija-flor. Quando Jeronimo dizia consigo estas<br />

palavras: ‘Como não havia <strong>de</strong> ser feliz Zefinha se casasse com Antonio Coelho!’ monologava este <strong>de</strong> se para<br />

se do seguinte modo: ‘Damiana, Damiana, meu amor, meu bem, minha vida, minha alma, que será <strong>de</strong> mim<br />

<strong>de</strong>ntro em pouco tempo, se sorte propicia não vier arrasar a muralha que nos separa? Ah! eu não posso viver<br />

sem ti, <strong>de</strong>licia cruel <strong>de</strong> minha existência, doce fatalida<strong>de</strong> que fizeste <strong>de</strong> mim escravo e <strong>de</strong>sgraçado!’<br />

Não foi preciso muito para que Zefinha compreen<strong>de</strong>sse que os sonhos <strong>de</strong> Coelho, seus pensamentos,<br />

suas ambições afetivas tinham por objeto outra mulher. Mas, por infelicida<strong>de</strong>, já sentia ela por ele todos os<br />

estremecimentos que revelam a existência da paixão. Herpe, corrosivo, o amor infeliz alastrava suas vesículas<br />

peçonhentas pelo coração virgem da rapariga, envolvendo-o em camada <strong>de</strong> fogo que o abrasava. Ela sentia o<br />

rapaz nos olhos, na fantasia, na luz, na sombra, entre a costura e a agulha, entre o sorriso e as lagrimas, entre a<br />

esperança vã e o <strong>de</strong>sengano previsto ou adivinhado. ‘Ele não quer saber <strong>de</strong> mim’ dizia Zefinha em seu<br />

entendimento. E chorava tristemente. Mas se Coelho aparecia, já ela sorria <strong>de</strong> novo, não porque volvesse a<br />

acreditar, como nos primeiros tempos que o português retribuía o seu afeto, mas porque sua doce imagem lhe<br />

trazia o prazer que fugia quando ele se ausentava. A po<strong>de</strong>r do esforço, Zefinha mostrou-se aparentemente<br />

senhora <strong>de</strong> sua paixão. Sem indiferenças <strong>de</strong>speitosas, sem contentamentos exagerados, ela conseguiu levar ao<br />

espirito <strong>de</strong> seu pai e ao do próprio Coelho a convicção <strong>de</strong> que, se não era feliz, também não era <strong>de</strong>sgraçada;<br />

que sobre o lago azul dos seus afetos pairava a calma da inocência; que por ai não sopravam os vulcões que<br />

revolvem o céu <strong>de</strong> anil da mocida<strong>de</strong>, e são antes lavas abrasadas do que sopros <strong>de</strong> tormenta.<br />

Para chegar a tamanho resultado a moça pôs em contribuição toda sua energia, que nunca fora tão

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