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O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

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últimas palavras do Tunda-Cumbe. Tome suas cautelas. Aquele malvado é traiçoeiro e está avezado a tirar<br />

moças solteiras da casa <strong>de</strong> seus pais.<br />

- Ele po<strong>de</strong>rá tirar alguma das minhas filhas; mas para fazer isso será preciso que primeiro me tenha morto e<br />

bem morto. Vou acabar já com esta festa.<br />

Fosse, porém, que os espíritos estavam muito exaltados para aten<strong>de</strong>rem às pru<strong>de</strong>ntes consi<strong>de</strong>rações do foreiro,<br />

fosse que Victorino não quis <strong>de</strong>sagradar àqueles que lhe honravam a casa com sua presença, o samba ferveu<br />

até o amanhecer do dia, aos estouros intermitentes do bacamarte <strong>de</strong> Saturnino, e aos gritos <strong>de</strong> - Viva S. João -<br />

soltados pelos diferentes sambistas, alguns apenas alegres, outros inteiramente entregues ao espírito<br />

vertiginoso da cana.<br />

XV<br />

Que razão teve Francisco para, apenas chegado da capital, ir em <strong>de</strong>manda do filho? Seria acaso para evitar<br />

que o rapaz se <strong>de</strong>ixasse envolver em algum distúrbio como aconteceu? Seria para fazê-lo sair da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m,<br />

segundo fez, no caso <strong>de</strong> já o achar colhido nas malhas <strong>de</strong>la?<br />

A razão foi outra. Não temia Francisco os perigos do samba. Des<strong>de</strong> pequeno sentia paixão por este<br />

divertimento, <strong>de</strong> que fora ar<strong>de</strong>nte cultor na mocida<strong>de</strong>. Gran<strong>de</strong> parte dos versos com que Lourenço <strong>de</strong>liciara os<br />

festeiros da casa <strong>de</strong> Victorino, ele os apren<strong>de</strong>ra <strong>de</strong> Francisco, insigne cantador e repentista. A fama <strong>de</strong>ste<br />

ultimo era tal que muitos dos matutos daquelas vizinhanças andavam espreitando a ocasião <strong>de</strong> ir Francisco ao<br />

Recife para fazerem com ele as suas viagens. É fácil a explicação <strong>de</strong>ste procedimento.<br />

Em sua companhia, as longas noites que tinham <strong>de</strong> curtir na travessa <strong>de</strong> muitas léguas <strong>de</strong> solidões quase<br />

inteiramente inabitadas, eram suavizados pelos formosos cantares do matuto. Que soberbos serões não<br />

tiveram eles, ao luar, as re<strong>de</strong>s armadas <strong>de</strong>baixo das arvores, os cavalos pastando peiados em frente a pousada,<br />

a viola quebrando com seus sons <strong>de</strong>leitosos a mu<strong>de</strong>z da noite, e Francisco enchendo o <strong>de</strong>serto com as<br />

inspirações <strong>de</strong> sua musa soberana e as harmonias <strong>de</strong> sua voz rica <strong>de</strong> ternura e <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>!<br />

Razão muito diferente teve o almocreve para procurar Lourenço.<br />

As noticias da guerra, trazidas por ele da capital, eram <strong>de</strong> suma gravida<strong>de</strong>. Ele próprio tinha ouvido em Olinda<br />

contar-se muito caso triste. Aí soube o que projetavam os mascates e os nobres. Com seus próprios olhos<br />

testemunhou os aprestos para a guerra. Viu <strong>de</strong> perto a chama imensa que começara a incendiar a província.<br />

João da Cunha, lidas as cartas, fez-lhe varias indagações, e com ele os amigos presentes, sobre o quetinha<br />

visto e sabia. Combinadas as informações pessoais do morador com as noticias enviadas por Amador da<br />

Cunha, por André, e por outros, forçado lhe foi reconhecer que, atirado o facho da revolução aos quatro<br />

ventos, <strong>de</strong>ntro em pouco pren<strong>de</strong>ria fogo a vila <strong>de</strong> Goiana, para on<strong>de</strong> emissários particulares dos portugueses<br />

tinham sido adre<strong>de</strong> mandados, e na qual contavam eles parciais po<strong>de</strong>rosos <strong>de</strong> meios e valorosos <strong>de</strong> animo.<br />

Entre estes apontavam-se Antonio Coelho, sujeito <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s espíritos; Jeronimo Paes dinheiroso marchante,<br />

não menos ar<strong>de</strong>nte do que o primeiro; Belchior Ferreira, rábula que, posto fosse filho da terra, bem como o<br />

meirinho Romão da Silva que <strong>de</strong>le recebia diariamente lições incendiarias, <strong>de</strong>stinadas a <strong>de</strong>cidir a gentalha do<br />

lugar a tomar o partido dos mercadores, fazia gran<strong>de</strong>s entradas nos espíritos por falar em nome da liberda<strong>de</strong><br />

do povo; Manoel Gau<strong>de</strong>ncio, alfaiate pernóstico, patranheiro e ambicioso, que aspirava a melhorar <strong>de</strong> oficio<br />

com a <strong>de</strong>scida dos nobres e a subida dos negociantes.<br />

O principio, ou antes os interesses contrários aos que estes sujeitos, e outros <strong>de</strong> idênticos sentimentos e<br />

intuitos, sustentavam eram representados pelos cavalheiros que já apontamos, isto é, pelos senhores-<strong>de</strong>engenho<br />

e pelas primeiras autorida<strong>de</strong>s, assim civis, como militares da localida<strong>de</strong>.<br />

Só uma vista curta não verá na guerra dos mascates, antes uma luta travada por dois gran<strong>de</strong>s princípios, do<br />

que uma revolta filha <strong>de</strong> preconceitos ridículos e costumes atrasados. Certo concorreram não pouco para essa<br />

luta o costume e o capricho antigo, inflexíveis ambos; mas o seu papel nessa gran<strong>de</strong> representação foi mais<br />

secundário do que principal. A parte essencial e verda<strong>de</strong>iramente dramática da ação, essa pertencia a dois<br />

gran<strong>de</strong>s interesses, assim das socieda<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas, como das antigas - ao comercio e a agricultura, princípios<br />

que, quando acor<strong>de</strong>s em seu <strong>de</strong>senvolvimento, trazem a properida<strong>de</strong> e riqueza dos povos, e, quando<br />

divergentes, o seu atraso senão o seu aniquilamento.<br />

As cartas <strong>de</strong> que Francisco foi portador, em substancia rezavam:<br />

Que a guerra, <strong>de</strong>clarada pelos forasteiros contra os pernambucanos e o governo legal, e já em principio <strong>de</strong><br />

execução, prometia ser <strong>de</strong> vida e morte, atentos os meios <strong>de</strong> que dispunham aqueles, e o empenho em que se<br />

mostravam <strong>de</strong> aniquilar estes;<br />

Que esses meios, eram imensos e consistiam não só em viveres acumulados durante os seis meses últimos nos

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