15.04.2013 Views

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

progressos humanos, os seres, ou antes, as forças in<strong>de</strong>strutíveis da matéria. Por entre uns paus secos aqui,<br />

umas moitas enredadas ali, umas arvores frondosas além, arrasta ainda a existência um ente contemporâneo<br />

<strong>de</strong> João da Cunha. Está mais selvagem, porém mais vivo e belo.<br />

Suas forças não diminuíram, antes aumentaram. Em suas faces há risos continuados. Não lhe alvejam na<br />

fronte as cans da velhice. Esse ente é o rio Capibaribe-mirim, <strong>de</strong> que em 1711 passava por <strong>de</strong>ntro do cercado<br />

do engenho Bujari, um braço cheio e vigoroso, o qual se estendia então sobre limpo e arenoso leito, enquanto<br />

hoje só o caçador ou algum viajor transviado o vê dilatar-se por entre matos e por baixo <strong>de</strong> frescas e amenas<br />

sombras. Semelhante ás cobras que rastejam em suas margens, ele serpeai <strong>de</strong>sconhecido e caracola, ora<br />

brando e vagaroso, ora barrento e assanhado, atravessando os próprios pontos on<strong>de</strong> no século passado<br />

brincava com a luz do dia e recebia os beijos da franca viração dos <strong>de</strong>scampados. As águas, com que refresca<br />

essa parte central da mata banham, antes <strong>de</strong> chegar ai, as povoações <strong>de</strong>nominadas Mocós e Timbaúba, únicos<br />

pontos populosos por on<strong>de</strong> passam. Toda a restante região que elas percorrem, é solitária e erma. O morador<br />

do centro civilizado fez-se quase exclusivo habitante da solidão e da floresta.<br />

O negro André, carreiro do engenho, tinha <strong>de</strong>scarregado, no pátio da casa-<strong>de</strong>-vivenda muito antes do<br />

anoitecer do dia 23 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1711, vários carros <strong>de</strong> lenha <strong>de</strong>stinada ás fogueiras <strong>de</strong> S. João. De dispor os<br />

grossos tóros <strong>de</strong> angico e cajueiro tinham sido encarregados três ou quatro parceiros daquele carreiro, <strong>de</strong><br />

propósito dispensados com cedo do serviço diário para este fim.<br />

No sobrado habitualmente silencioso, notava-se a animação, o bulício que acompanham fatalmente esta festa<br />

popular.<br />

Viam-se senhoras na sala dos hospe<strong>de</strong>s. Algumas <strong>de</strong>las eram mulheres, outras eram filhas dos nobres<br />

proprietários convidados para a reunião; e conversavam sentadas nas ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> sola com pregaria que<br />

guarneciam a sala e das quais ainda se vêm algumas, que são como as relíquias do tempo em que<br />

representaram gran<strong>de</strong> adiantamento da arte.<br />

A mobília, não obstante ser <strong>de</strong> uma casa em que se professavam hábitos <strong>de</strong> nobreza e riqueza, não era <strong>de</strong> dar<br />

na vista; ao contrario, pouco adiantava á que se encontra presentemente em alguns engenhos, don<strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

parte dos hábitos daquele tempo não <strong>de</strong>sapareceu inteiramente. Além das ca<strong>de</strong>iras viam-se dois canapés,<br />

também cobertos <strong>de</strong> sola, três ou quatro bancas <strong>de</strong> acaju, e uma gran<strong>de</strong> cômoda <strong>de</strong> nogueira com muitas<br />

or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> gavetas. Sobre as bancas havia alfaias <strong>de</strong> prata e sobre a mesa estava assente um can<strong>de</strong>eiro gran<strong>de</strong><br />

do mesmo metal. Pendiam da pare<strong>de</strong>, fronteiros e na mesma altura dois quadros em que apareciam retratados<br />

o senhor e a senhora do engenho.<br />

A sala das mulheres, aquele momento <strong>de</strong>serta, atestava melhor o gosto, a educação e a mocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> d.<br />

Damiana. Sobre cômoda <strong>de</strong> formas menos pesadas do que o da sala contígua, certamente obra <strong>de</strong> fora, em que<br />

se procurara entalhar uns longes do gosto <strong>de</strong> Luiz XIV, via-se um rico santuário <strong>de</strong> jacarandá, que, estando<br />

aberto, <strong>de</strong>ixava ver por entre ramalhetes <strong>de</strong> frescas flores naturais, formosas e ricas imagens, adornadas com<br />

seda, ouro e pedras preciosas. Por junto da pare<strong>de</strong> corria um estrado coberto <strong>de</strong> damasco, e fronteiro a ele<br />

mostrava-se o bufete <strong>de</strong> especial estimação da aristocrática senhora. Um tear ao canto, bancas <strong>de</strong> jacarandá <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>licadas entalhas e sobre as bancas garrafinhas e frascos <strong>de</strong> vidro e cristal completavam, com o gran<strong>de</strong><br />

espelho afixado na pare<strong>de</strong>, a sala particular <strong>de</strong> d. Damiana.<br />

Ao acen<strong>de</strong>r as fogueiras achavam-se os homens, não na sala-<strong>de</strong>-visitas, mas no aposento imediato - espécie <strong>de</strong><br />

gabinete on<strong>de</strong> tinha João da Cunha cama para <strong>de</strong>scansar, papeis, roupas e armas.<br />

Á luz amarelenta <strong>de</strong> um can<strong>de</strong>eiro, colocado sobre uma secretária <strong>de</strong> forma <strong>de</strong> piano, lia o senhor <strong>de</strong> engenho,<br />

para os amigos ouvirem, as ultimas regras <strong>de</strong> uma carta que recebera <strong>de</strong> André da Cunha, morador em Olinda.<br />

<br />

- Que havia <strong>de</strong> fazer ele? inquiriu Matias Vidal. Aquele feixe <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s não é para semelhantes lutas.<br />

- É isto exatamente o que escreve André respon<strong>de</strong>u João da Cunha.<br />

E prosseguiu a leitura:<br />

< Enfim o Recife está cercado <strong>de</strong> trincheiras, fortemente guarnecidas <strong>de</strong> gente e providas <strong>de</strong> munições <strong>de</strong><br />

guerra.<br />

< Como não tenho certeza <strong>de</strong> que esta vá Ter ás suas mãos, por isso que a todo canto a nobreza se está<br />

picando nos espinhos da traição, finalizo, rogando a Deus se sirva olhar por nós e por nossas famílias<br />

ameaçadas <strong>de</strong> toda sorte <strong>de</strong> calamida<strong>de</strong>s, das quais a menos crua será a morte.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!