O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
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futuro esteio da casa, <strong>de</strong> seu natural fraca, o amigo e protetor <strong>de</strong>les, quando velhos, <strong>de</strong> seu natural forte.<br />
A esse tempo não era a habitação <strong>de</strong> Francisco a única existente na estrada do Cajueiro. Obra <strong>de</strong> trezentas<br />
braças para o sul via-se outra <strong>de</strong> melhor parecer, <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pedra e coberta <strong>de</strong> telha. Pertencia a um padre<br />
que, tendo por ali aparecido não se sabia como nem porque, fora convidado pelo sargento-mór João da Cunha<br />
para capelão do engenho. O padre Antônio escolheu aquele local para sua residência, <strong>de</strong>sprezando uma boa<br />
morada que o senhor do engenho possuía <strong>de</strong>ntro do cercado, e até a residência que lhe ofereceu na própria<br />
casa gran<strong>de</strong>. Escolhido o local e feito o prédio, o padre chegou-se a João da Cunha e lhe disse que <strong>de</strong> há muito<br />
cumpria o voto <strong>de</strong> só morar em proprieda<strong>de</strong> que fosse sua, e por isso lhe pedia <strong>de</strong>clarasse por quanto vendia,<br />
com os respectivos terrenos, a casa feita. O sargento-mór, que achará aquilo singular, e enxergará no ato<br />
inocente do padre um assomo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência e altivez, não querendo por vaida<strong>de</strong> própria da nobreza<br />
daqueles tempos ficar por baixo, <strong>de</strong>clarou que lhe dava <strong>de</strong> mão beijada casa e terrenos, e disso se lavrou<br />
termo.<br />
O novo vizinho foi recebido com alvoroço pela família do Cajueiro. Quem era que por então não tinha em alta<br />
estima o sacerdote da religião santa do Crucificado?<br />
Francisco, saltando <strong>de</strong> contente, para me servir da frase do povo, dizia a Marcelina que dava mostras <strong>de</strong> sentir<br />
dobrado prazer com a nova vizinhança.<br />
- Bem-dita foi a hora em que abri meu sitio nesta estrada. Olhe lá como o Cajueiro está honrado. E daqui a<br />
pouco já não haverá quem não queira vir levantar sua casa aqui por perto. Basta saber-se que o capelão <strong>de</strong><br />
Bujari quis antes morar no Cajueiro do que no engenho, para todo o povo correr para este ponto.<br />
- É verda<strong>de</strong>, Francisco, é verda<strong>de</strong>, respon<strong>de</strong>u Marcelina. Temos agora bem perto <strong>de</strong> nós quem nos confesse e<br />
unja em caso <strong>de</strong> morte, o que Deus tal não permita.<br />
- E que gloria tenho eu <strong>de</strong> se dizer que fui eu que fun<strong>de</strong>i o Cajueiro! acrescentou o matuto. Se ele não<br />
prestasse, não havia <strong>de</strong> querer morar nele o capelão do engenho. O que eu quero é que a todo tempo se saiba<br />
que fui o primeiro morador <strong>de</strong>ste lugar. Seu padre Antônio já me fez esta justiça. Ainda ontem ele virou-se<br />
para mim, quando fui á vê-lo, em sua casa nova, e me disse que eu que tenho olho para conhecer lugar <strong>de</strong> boa<br />
moradia.<br />
Por muito tempo levaram os moradores velhos a praticar neste sentido do novo morador. Da casa passaram ao<br />
homem físico, e do homem físico ao homem moral. Nada disseram <strong>de</strong>le na ausência que não pu<strong>de</strong>sse ser dito<br />
na presença. Ainda hoje a maledicência não é qualida<strong>de</strong> característica do povo; naqueles tempos ainda o era<br />
menos.<br />
O que Francisco disse do padre, foi que sua pali<strong>de</strong>z e sua magreza indicavam que ele perdia noites <strong>de</strong> sono no<br />
serviço <strong>de</strong> Deus; Marcelina acrescentou que seus olhos pardos e como quebrados, seus sorrisos tristes, suas<br />
palavras simples revelavam consciência limpa, <strong>de</strong>sprezo pelo mundo e bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> coração. Francisco ajuntou<br />
que já uma vez em Olinda tinha visto um fra<strong>de</strong> com o qual muito se parecia o padre Antônio, por sua estatura<br />
média, a cabeça gran<strong>de</strong>, a testa larga, o rosto comprido, as faces <strong>de</strong>scarnadas. Enfim Marcelina, recordando-se<br />
<strong>de</strong> uma novena na igreja do Senhor-dos-martirios, disse que a voz fraca e branda do sacerdote que fez ai uma<br />
pratica ao povo, era a mesma do padre Antônio.<br />
Nem o marido nem a mulher andavam longe da verda<strong>de</strong>. O padre Antônio tinha sido fra<strong>de</strong>, e foi<br />
provavelmente no tempo em que ainda o era, que se encontrou com ele o matuto. Um ano <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
secularizado, <strong>de</strong> passagem para Paraíba, aposentou-se no convento do Carmo em Goiana, aon<strong>de</strong> o foi<br />
convidar para dirigir a novena dos Martírios um negociante que o conhecia quando ele pertencia á recoleta do<br />
Recife. É natural que ai o tivesse ouvido Marcelina.<br />
Eles não estavam também longe da verda<strong>de</strong> no tocante ao moral do padre Antônio. Gran<strong>de</strong> era a sua<br />
humilda<strong>de</strong>, publica a sua pieda<strong>de</strong>, notória a sua benevolência, <strong>de</strong> que todos davam noticia no Recife, em<br />
Olinda, e na Paraíba, don<strong>de</strong> viera para Goiana, fazia poucos meses. Com serem fra<strong>de</strong>s, gente <strong>de</strong> seu natural<br />
maldizente - estes sim - os do Carmo <strong>de</strong> Goiana que o conheciam, nada contavam <strong>de</strong>le que o <strong>de</strong>sabonasse. Só<br />
um <strong>de</strong>les - vejam o que são fra<strong>de</strong>s - explicava a secularização do padre Antônio dizendo que, realizando-a,<br />
não o fizera ele com outro fim que o <strong>de</strong> <strong>de</strong>simpossibilitar-se para herdar muitos mil cruzados <strong>de</strong> uma tia<br />
solteirona que lhe votava gran<strong>de</strong> afeição. O certo é que a tia morreu, e o padre foi o único her<strong>de</strong>iro da fortuna<br />
<strong>de</strong>ixada.<br />
O que o padre Antônio era, quais os seus sentimentos e dotes naturais, sua pieda<strong>de</strong>, seu intimo ver-se-há<br />
melhor pela presente narrativa.<br />
Lourenço sentiu inclinarem-se para o sacerdote os seus afetos, e teve por ele instintivo respeito. Por sua vez, o<br />
padre Antônio, que parecia saber já a historia do rapaz, não perdia ocasião <strong>de</strong> o encaminhar para a<br />
honestida<strong>de</strong> e a virtu<strong>de</strong> com a satisfação que enche o coração do varão reto quando se lhe <strong>de</strong>para a quem<br />
beneficiar.