15.04.2013 Views

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Refugiaram-se no mato os homens feridos e as mulheres chorosas e consternadas que constituíam os últimos<br />

restos da parentela <strong>de</strong> Manoel do Ó. Aí o seu ódio cresceu e radicou-se profundamente no coração <strong>de</strong> cada um<br />

dos foragidos. Exagerados em seus <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagravar-se, juraram na solidão da selva, testemunha da sua<br />

adversida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>positaria dos seus prantos, que se pu<strong>de</strong>ssem voltar com vida a Pedras-<strong>de</strong>-fogo, como lei <strong>de</strong><br />

sua honra, não consentiriam jamais que nenhum português se <strong>de</strong>morasse mais <strong>de</strong> vinte e quatro horas na<br />

povoação fundada pela ilustre vitima cuja memória eles <strong>de</strong>ste modo queriam honrar. Julgavam, jurando<br />

preencher esta promessa solene, que cumpriam um preceito <strong>de</strong> alta justiça. Não era porém outro sentimento o<br />

<strong>de</strong>les, assim prometendo, que o sentimento da vingança pessoal, sempre cego e injusto.<br />

Transmitindo-se <strong>de</strong> pai a filho, <strong>de</strong> filho a neto, nem foi esquecida a tradição do morticínio nem ficou sem<br />

preenchimento a promessa feita entre prantos e angustias há mais <strong>de</strong> um século.<br />

Não há no que aí fica relatado, invenção <strong>de</strong> romancista. Até bem pouco tempo, logo que chegava qualquer<br />

filho <strong>de</strong> Portugal a Pedras-<strong>de</strong>-fogo, era intimado <strong>de</strong> ordinário por moradores pertencentes às primeiras<br />

famílias, para que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> poucas horas se retirasse.<br />

Este exagero passou <strong>de</strong> todo. A civilização, polindo o brasileiro do interior, <strong>de</strong>ixou-lhe inteiramente livres os<br />

movimentos <strong>de</strong> natural generosida<strong>de</strong> e brandura, que constituem a parte essencial <strong>de</strong> seu gênio.<br />

Enquanto estas cenas e outras semelhantes se passavam em diferentes pontos do termo <strong>de</strong> Goiana, acertadas<br />

provi<strong>de</strong>ncias eram dadas pelo governo da capital a fim <strong>de</strong> que elas não se reproduzissem.<br />

Não sem razão inspirava aos nobres plena confiança o ajudante-<strong>de</strong>-tenente Francisco Gil Ribeiro. A galhardia<br />

e a bravura militar <strong>de</strong> Gil eram tradicionais, e constituíam um dos mais ricos e ilustres patrimônios da gloria<br />

pernambucana. Para <strong>de</strong>scansar das fadigas da sua longa e trabalhosa vida, acolhera-se o ancião na sombra do<br />

lar domestico. Afetos brandos, inclinações respeitáveis, tinham-se substituído às violentas explosões da<br />

paixão guerreira. Estabelecera ele sua residência nas Salinas (hoje Santo-Amaro), à margem direita do<br />

Beberibe, entre cajueiros e sapotiseiros pitorescos. Daí o foi tirar o governo, para lhe entregar o comando da<br />

fortaleza <strong>de</strong> Itamaracá, ameaçada <strong>de</strong> cair no po<strong>de</strong>r dos amotinados <strong>de</strong> Goiana. As noticias, porém, dos graves<br />

e sucessivos conflitos havidos nesta vila, <strong>de</strong>terminaram o governo a or<strong>de</strong>nar que o ajudante-<strong>de</strong>-tenente, à<br />

frente <strong>de</strong> quarenta homens, e acompanhado dos alferes Carlos Teixeira e Francisco Alves, e do ajudante<br />

Felipe Ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Melo, se dirigissem sem perda <strong>de</strong> tempo a pacificar aquela localida<strong>de</strong>.<br />

Ao entrarem na estrada geral do norte, um matuto que passava do Recife, vendo a força, recuou o cavalo, para<br />

<strong>de</strong>ixar livre o caminho. Parecendo suspeito a Gil este movimento <strong>de</strong> pura cortesia ou respeito, fez sinal a<br />

alguns soldados que segurassem o matuto. Este, porém, que não era outro que Francisco, adivinhando a<br />

intenção, pôs-se a respeitosa distancia, aos primeiros gestos dos soldados.<br />

- Que idéia faz <strong>de</strong> mim, seu comandante? perguntou ele com serenida<strong>de</strong>. Pensará que sou pela mascataria?<br />

Pois se pensa, está malenganado.<br />

Ouvindo estas palavras, Gil, com gesto imperioso e grave chamou o matuto para mais perto <strong>de</strong> si; e lhe disse:<br />

- Quem foi que te ensinou este recado para me iludires?<br />

- Não quero iludir ninguém.<br />

Cuidado com esta gente, senhor ajudante, disse Felipe Ban<strong>de</strong>ira a meia voz a Gil. Parecendo simplórios, são<br />

finos e manhosos.<br />

- Mas quem lhe disse que eu sou pela mascataria? tornou Gil a Francisco.<br />

Se é ou se não é, eu não posso jurar. Cá eu é que não sou nem serei por eles nem neste mundo nem no outro.<br />

- Então, se eu tivesse necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma pessoa que me ensinasse os atalhos para chegar à vila sem ser<br />

pressentido pelos nobres, não me prestava você <strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong> este serviço tão pequeno?<br />

- Saberá vossa senhoria que nem <strong>de</strong> boa nem <strong>de</strong> má vonta<strong>de</strong> eu lhe ensinava os caminhos da vila para este<br />

fim. Daqui mesmo <strong>de</strong>storcia para traz no meu castanho, porque para servir a tais indivíduos não há forças<br />

humanas que me obriguem, nem dinheiro que me compre.<br />

- Gran<strong>de</strong> ódio tem você à esses homens que só cuidam em viver do seu trabalho.<br />

Eu cá sei em que eles cuidam. Querem enriquecer à nossa custa. Ven<strong>de</strong>m a fazenda pela hora da morte, agora<br />

os gêneros da terra querem comprar por pouco mais que nada. Não fazem isto só com o pobre matuto, como<br />

eu; até os senhores-<strong>de</strong>-engenho gemem entre as unhas <strong>de</strong>les. O que não tem o olho vivo, quando dá acordo <strong>de</strong><br />

se está com as terras, as canas, os negros <strong>de</strong> sua proprieda<strong>de</strong> metidinhos todos <strong>de</strong>ntro da gaveta do mascate,<br />

que faz os suprimentos e adiantamentos. Muito francos em fiarem são os tais mascates, quando vêm que a<br />

pessoa a quem fazem seus oferecimentos, tem bens <strong>de</strong> seus. Agora, quando a conta está bem aumentada,<br />

tomam tudo pela justiça, e ficam donos <strong>de</strong> casas, escravos e fazendas do dia para noite. Se isto é ser bom, o<br />

inimigo leve esta bonda<strong>de</strong> para si, que eu não a quero nem <strong>de</strong> graça, quanto mais à custa do meu roçado, do<br />

meu cavalo e da minha casinha.<br />

Tendo dito estas palavras, Francisco, chegou a espora que trazia no pé direito à barriga do castanho e virou

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!