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O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

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A enormida<strong>de</strong> e a iminência do perigo abateram o gran<strong>de</strong> animo da senhora-<strong>de</strong>-engenho, a qual, percebendo<br />

levantar-se diante <strong>de</strong> seus olhos o vulto horripilante da morte, não escolheu meios <strong>de</strong> fugir a esta fúnebre<br />

visão, e <strong>de</strong>ixou-se arrastar sem resistência e como sem consciência pelo mercador.<br />

De feito, ela ouvira centenas <strong>de</strong> vozes pedir do lado <strong>de</strong> fora a sua cabeça em resgate do crime que fora aliás<br />

praticado por seu marido; vira a casa tomada pelos amotinados, resolutos a não terem para ninguém, e muito<br />

menos para ela, se não fosse o negociante, a menor contemplação; conhecera enfim que sua vida, posto que à<br />

sombra da proteção <strong>de</strong>le, não se podia consi<strong>de</strong>rar ainda <strong>de</strong> todo segura. Então não hesitou, não refletiu. Pegou<br />

da mão que se lhe estendia. O instinto da própria conservação impõe-se como uma fatalida<strong>de</strong>. D. Damiana<br />

não podia mostrar-se superior a essa lei absoluta e impreterível.<br />

Para Coelho a crise tinha chegado à solução natural e única. João da Cunha, uma vez nas mãos dos inimigos,<br />

não haveria sair <strong>de</strong>las com vida. E o homicídio, previsto pelo mercador, não esteve longe <strong>de</strong> ser cometido nos<br />

primeiros momentos <strong>de</strong>pois da prisão do senhor-<strong>de</strong>-engenho; mas interpôs-se uma circunstancia, menos filha<br />

do acaso do que da clemência com que o céu quis vir a seu socorro. Os filhos <strong>de</strong> Jeronimo Paes assentaram<br />

não lhe tirar a vida senão <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> perdida a esperança <strong>de</strong> um resgate em dinheiro, por então muito em voga.<br />

Coelho não pensou mais senão em efetuar a sua viagem para o Recife. Ai esperaria a ultima palavra dos<br />

acontecimentos, que para ele não era duvidosa. Ai realizaria o seu sonho. Mas para que este resultado não<br />

estivesse sujeito ao mínimo contraste, urgia <strong>de</strong>ixar Goiana. Demais, as turbas achavam-se exacerbadas e<br />

podiam ter o capricho feroz <strong>de</strong> preencher a sua vingança <strong>de</strong>rramando o sangue <strong>de</strong> infeliz senhora. enfim,<br />

apresentando-se todas estas idéias ao espirito do negociante, correu ele à casa, meteu em se todo o ouro que<br />

tinha em segredo no cofre, e dizendo a d. Damiana que a ia recolher em lugar on<strong>de</strong> o povo não pu<strong>de</strong>sse<br />

suspeitar seu homizio, encaminhou-se com ela em direitura para a Rua-do-rio.<br />

D. Damiana não votava <strong>de</strong>safeição a Coelho. Ele tinha sido, por assim escrevermos, seu companheiro <strong>de</strong><br />

infância, e tanto bastava para que a seus olhos o jovem europeu não aparecesse senão como um amigo, ou um<br />

irmão. É verda<strong>de</strong> que, mais tar<strong>de</strong>, distancia maior se esten<strong>de</strong>ra entre eles dois, filha da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

condição que naqueles tempos tanto predominava nas relações sociais e <strong>de</strong> família. Mas as tradições da<br />

primeira ida<strong>de</strong>, que, como os hieróglifos dos egípcios e os caracteres cuneiformes dos persas, que tem<br />

atravessado as eras e dizem idéias tão duradouras como as pedras em que existem entalhados, não se apagam,<br />

senão com a morte, da imaginação ou, melhor, do coração on<strong>de</strong> se gravaram e don<strong>de</strong> dizem a todo tempo a<br />

sua muda e eloqüente linguagem, essas tradições extintas e sempre vivas prendiam irresistivelmente a gentil<br />

senhora-<strong>de</strong>-engenho, pelo passado, ao jovem português, como na escritura comum, o traço <strong>de</strong> união liga o<br />

verbo com o pronome, e <strong>de</strong> duas vozes diferentes faz uma só.<br />

Em sua consciência mais <strong>de</strong> uma vez protestou contra certas manifestações do <strong>de</strong>sdém <strong>de</strong> João da Cunha para<br />

com o negociante; e, conquanto, melhor do que ninguém, ajuizasse da profun<strong>de</strong>za do abismo que entre eles<br />

cavara a fatalida<strong>de</strong>, nem por isso negava a Coelho certas atenções, aquelas que, pela própria fidalguia dos<br />

seus sentimentos, entendia que <strong>de</strong>via ter para o antigo amigo da casa. Nunca <strong>de</strong>ixou sem retribuição os<br />

cumprimentos e as saudações do mercador, nem lhe recusou falas respeitosas, por ocasião <strong>de</strong> se encontrarem.<br />

Seu natural espirito <strong>de</strong> justiça levava-a até a justificar os profundos ressentimentos <strong>de</strong> Coelho, quando<br />

compreen<strong>de</strong>u a verda<strong>de</strong>ira causa <strong>de</strong>les. ‘ Ele cuidava - dizia d. Damiana consigo mesma - ele cuidava que<br />

po<strong>de</strong>ria casar comigo. Julgava que, tendo entrada em nossas relações, estava habilitado para pren<strong>de</strong>r-se à<br />

família por laços que só o parentesco e a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> condição po<strong>de</strong>m criar. ‘<br />

Tais eram as idéias e os sentimentos <strong>de</strong> d. Damiana. Por isso, sentindo a gravida<strong>de</strong> do momento, ela não<br />

escrupulisou acompanhar o negociante, única tábua <strong>de</strong> salvação que nos cruzados mares da súbita adversida<strong>de</strong><br />

lhe aparecia como instrumento do céu.<br />

E antes <strong>de</strong> passarmos adiante, justo é que <strong>de</strong>ixemos bem claro este ponto essencial da presente narrativa:<br />

Coelho não era indigno da confiança que, por força das circunstancias atuais, ou por influencia irresistível <strong>de</strong><br />

circunstancias anteriores e remotas, <strong>de</strong>positou nele a jovem fidalga. O amor que ele lhe consagrava, era<br />

sublime e puro; tinha origem imediata no sentimento, não nos sentidos. O português estava na flor dos anos, e<br />

seu caráter não se tinha poluído ainda no trato das relações sociais. Nessa época da vida e com esta<br />

circunstancia, o amor é mais do que um sentimento, é uma virtu<strong>de</strong>. Ten<strong>de</strong> sempre a elevar-se, e nunca a<br />

rebaixar-se. O negociante amava em d. Damiana um ente, uma criatura, um composto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s corporais<br />

e imateriais, não unicamente uma feitura plástica, uma forma física, não obstante se acharem coligidas nessa<br />

forma todas as perfeições que ele sonhava para o seu i<strong>de</strong>al. Sua aspiração não se limitava à posse do olhar, do<br />

sorriso, do carinho <strong>de</strong>ssa criatura; ele aspirava, não menos do que a isto, ás suas perfeições morais, à parte<br />

imaterial da pessoa humana, a essa porção do ser que não é a figura corporal, o arredondado dos contornos, o<br />

donaire do talhe, o aveludado da face e da mão, o colorido da cútis, a vibração da voz, mas, mostrando-se

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