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O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

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- É a senhora d. Damiana, com as negras.<br />

- Que loucura! E on<strong>de</strong> acharam munições? On<strong>de</strong> acharam munições?<br />

- Lá em cima. A senhora d. Damiana tinha muitas dúzias <strong>de</strong> cartuchos guardados. Cada um <strong>de</strong> nós<br />

tem já a patrona cheia.<br />

- Graças, meu Deus! exclamaram os fidalgos. Mas então porque <strong>de</strong>sceram, porque abandonaram seu<br />

posto? perguntou o sargento-mór.<br />

- Foi ela que nos mandou para baixo. Ela disse que havia mais necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nós cá embaixo on<strong>de</strong><br />

nenhum tiro se disparava, do que lá em cima. E a senhora d. Damiana teve razão - disse Filipe<br />

Cavalcanti, que, tendo ido olhar pelos olhais, voltara correndo ao lugar on<strong>de</strong> estas coisas se<br />

passavam. Acudam todos. Os bandidos batem-nos à porta. Uma <strong>de</strong>scarga agora contra eles <strong>de</strong>ve ser<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> proveito para nós.<br />

Correram todos os que tinham as armas carregadas. Um estampido imenso ecoou <strong>de</strong>ntro do vasto armazém.<br />

No chão da rua caíram vários dos assaltantes - muitos feridos, alguns mortos. Era o primeiro sinal <strong>de</strong> vida que<br />

dava <strong>de</strong> se para o lado <strong>de</strong> fora o armazém.<br />

Tomando por estratégia o silencio que até então ai reinara, recuaram os assaltantes amedrontados, mas não o<br />

fizeram tão prontamente que ficassem logo fora do alcance <strong>de</strong> novos tiros disparados do sobrado, <strong>de</strong>sta vez<br />

mais certeiros do que das outras. Novas perdas contou a força invasora.<br />

Quando cessou <strong>de</strong> todo o estrondo da ultima <strong>de</strong>scarga, uma voz vibrou nos ares, forte e pujante, por entre as<br />

exclamações <strong>de</strong> dor dos feridos. Partia ela do cruzeiro e parecia dirigir-se aos do sobrado.<br />

Mulheres ímpias, mulheres ímpias, que atirais contra a cruz do re<strong>de</strong>ntor, ve<strong>de</strong> lá não venhais rasgar<br />

as veias sacrossantas daquele que em espirito está aqui pregado nela. Ergueram-se todas as vistas ao<br />

ponto don<strong>de</strong> tais palavras caiam.<br />

Um vulto vestido <strong>de</strong> negro <strong>de</strong>stacava sobre a larga peanha do cruzeiro. Estava <strong>de</strong> pé, o braço esquerdo<br />

passado em torno da haste pétrea, enquanto o direito <strong>de</strong>stendido parecia acompanhar e completar a direção e o<br />

eco <strong>de</strong> sua voz. A cara branca e macilenta, o perfil negro e esguio, a voz fina e vibrante davam aquele vulto<br />

certa aparência majestosa e patética. O que sobressaia nele, cercando-o <strong>de</strong> uma como virtu<strong>de</strong> misteriosa e<br />

fatal, era o animo terso, a temerida<strong>de</strong> a modo <strong>de</strong> barbara, a fé passiva e animal que o fizera levantar-se diante<br />

das balas inimigas, que em torno <strong>de</strong> se cortavam o fio <strong>de</strong> muitas vidas. Esse vulto, esse espectro, esse animo<br />

que excedia a medida humana, era um membro da Companhia-<strong>de</strong>-Jesus. Era o padre Henrique Celini. Fora<br />

mandado expressamente do Recife para pregar contra os nobres e a favor dos mercadores. Seu nome <strong>de</strong>via<br />

figurar <strong>de</strong>pois na carta monitoria em que o bispo cometia ao Padre Manoel Lopes todas as necessárias<br />

faculda<strong>de</strong>s a fim <strong>de</strong> que ‘notificasse certos clérigos para aparecerem em sua presença, e os corrigisse da<br />

escandalosa missão <strong>de</strong> andarem seduzindo os ânimos dos que os ouviam a seguirem por seleta e segura a nova<br />

doutrina sustentada pelos conjurados do Recife, com a qual agitaram o povo e <strong>de</strong>ram tanto abalo a toda a<br />

terra.’<br />

Apenas ouviu as primeiras palavras do jesuíta, o sargento-mór correu à sala superior. As balas paraibanas<br />

tinham <strong>de</strong>ixado ai traços medonhos. Viam-se nas pare<strong>de</strong>s, por entre superficiais escoriações, profundos<br />

ferimentos. Parte do estuque do teto estava por terra. Das rotulas algumas se mostravam <strong>de</strong>spedaçadas, outras<br />

com imensos rombos por on<strong>de</strong> do pátio se via gran<strong>de</strong> parte do que se fazia na sala. A frente da casa po<strong>de</strong>r-seia<br />

comparar com a careta <strong>de</strong> um homem vesgo e <strong>de</strong>s<strong>de</strong>ntado.<br />

D. Damiana, <strong>de</strong> pé por trás <strong>de</strong> uma das rotulas mais <strong>de</strong>struídas, olhava para o pregador por um dos rombos, no<br />

momento em que seu marido entrou na sala. As outras mulheres imitavam a senhora-<strong>de</strong>-engenho das outras<br />

janelas. Vin<strong>de</strong> ouvir, Sr. João da Cunha, vin<strong>de</strong> ouvir o pregador - disse ela. Ainda está falando ai essa sombra<br />

do inferno? Perguntou ele, lançando as vistas para o pátio, por cima do ombro da mulher. E rapidamente<br />

levou ao rosto o clavinote, como quem o queria <strong>de</strong>sfechar sobre aquele novo sustentador da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e da<br />

<strong>de</strong>struição que aludiam a sua posição e o seu po<strong>de</strong>r.<br />

Mas no mesmo instante sentiu-se apertado entre dois braços fortes, roliços e <strong>de</strong>liciosos. Sentiu uma macia<br />

mão pegar-lhe do pulso e obrigá-lo a abaixar a arma. Ouviu uma voz terna, aflita, plangente pedir-lhe que não<br />

atirasse.<br />

Não atireis, não atireis, Sr. João da Cunha, sobre o padre. Seria um gran<strong>de</strong> pecado. Atreveis-vos a dizer-me<br />

estas palavras, senhora? exclamou o fidalgo. O que ali está não é um padre, um ministro <strong>de</strong> Deus. É o espirito<br />

<strong>de</strong> Satanás. É um perverso que <strong>de</strong>ve cair atravessado por uma bala. Peço-vos também eu que não atireis, seu<br />

sargento-mór - disse-lhe outra voz ao pé <strong>de</strong> si. João da Cunha voltou-se e <strong>de</strong>u <strong>de</strong> face com Marcelina, que<br />

dava mostras <strong>de</strong> quem ia ajoelhar-se. Alongando os olhos algum tanto mais, viu todas as mulatas na mesma<br />

atitu<strong>de</strong>, acusando sua fisionomia os mesmos sentimentos manifestados pela senhora-<strong>de</strong>-engenho e pela<br />

cabocla. A forte guarnição que até aquele momento mantivera nutrido e mortífero fogo sobre os invasores;

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