15.04.2013 Views

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>de</strong> cem braças, oculto por um cotovelo que formava a estrada.<br />

Sentindo o coração pular-lhe <strong>de</strong> contente, Francisco virou-se para Gil:<br />

- Seu comandante, vossa senhoria dá licença que eu vá adiante acordar minha mulher e meu filho? Estou que<br />

não posso me conter.<br />

- Po<strong>de</strong> ir, meu bom companheiro. Corra já. É natural a sua impaciência. A nossa casinha fica ali adiante, na<br />

beira do caminho, à direita, continuou Francisco. A que fica a esquerda é a <strong>de</strong> seu padre Antonio. Até logo,<br />

seu comandante.<br />

Francisco esporeou o castanho, que, não obstante vir caindo <strong>de</strong> fome e enfado, se empinou, ainda <strong>de</strong>baixo das<br />

pernas do senhor, naturalmente por ter sentido o cheiro da manjedoura <strong>de</strong> casa, e, contornando o cotovelo da<br />

estrada, <strong>de</strong>sapareceu quase <strong>de</strong> repente da vista dos que ficavam atrás.<br />

- Estou cativo <strong>de</strong>ste matuto, disse Gil, voltando-se para os companheiros.<br />

- Este profundo amor da família, comandante, é um dos dotes naturais do nosso almocreve, disse Felipe<br />

Ban<strong>de</strong>ira.<br />

- Bem sei. Em minha longa vida poucos tenho encontrado que <strong>de</strong>smintam este mo<strong>de</strong>lo. Mas o que acho<br />

especial em Francisco é o <strong>de</strong>sembaraço, a graça, a franqueza que põe em suas palavras e ações. É verda<strong>de</strong>,<br />

disse o alferes Teixeira. Quase sempre os matutos se tornam bisonhos, quando se acham com pessoas a quem<br />

<strong>de</strong>vem respeito.<br />

- Se tivesse meios, era capaz <strong>de</strong> obsequiar-nos com um lauto banquete. Assim parece. Mas... que vem a ser<br />

aquilo, comandante? perguntou Felipe Ban<strong>de</strong>ira, apontando para frente.<br />

- Tinham dado a volta do caminho e entravam no Cajueiro. A casa do padre Antonio apareceu logo aos olhos<br />

<strong>de</strong> todos, à esquerda, como dissera Francisco; mas no ponto on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>via mostrar a casa <strong>de</strong>ste, o que eles<br />

viram foi um montão <strong>de</strong> cinzas, <strong>de</strong> que se levantavam ainda fumo e restos <strong>de</strong> chama por entre algumas<br />

pare<strong>de</strong>s, esburacadas e enegrecidas.<br />

- O cavalo castanho, entregue <strong>de</strong> todo à fome que trazia, <strong>de</strong>vorava, sem cavaleiro, a grama ver<strong>de</strong>, que<br />

guarnecia a estrada. Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraça houve por aqui! exclamou Gil.<br />

E atirou-se para diante da tropa e com pouco chegou ao pé das ruínas fumegantes.<br />

- Francisco? Francisco? Chamou ele, sem po<strong>de</strong>r dominar a sua comoção. Que foi isto, meu amigo?<br />

O matuto, quase a queimar-se nos barrotes e caibros que ainda ardiam por entre o barro caído das pare<strong>de</strong>s,<br />

revolvia com um ferro <strong>de</strong> cova, semelhando visão fantástica, os paus e a terra abrasada. Ouvindo a voz <strong>de</strong> Gil,<br />

respon<strong>de</strong>u:<br />

- Estou <strong>de</strong>sgraçado, seu comandante. Puseram-me fogo na casa, como vê. Mas o que me aterra é pensar que<br />

po<strong>de</strong>m estar <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong>stes torrões minha mulher e meu filho queimados!<br />

- Não há <strong>de</strong> ser assim, Francisco.<br />

Marcelina! Lourenço! Exclamava <strong>de</strong> momento a momento o matuto, cavando e revolvendo sempre os<br />

entulhos eriçados <strong>de</strong> lascas, algumas flamejantes, muitas reduzidas a carvão. Ninguém me respon<strong>de</strong>,<br />

comandante. morreram todos! Morreram! Estou sem mulher, sem filho, sem casa. Só me <strong>de</strong>ixaram a miséria e<br />

o luto.<br />

As feições do matuto mostravam-se <strong>de</strong>sfiguradas. Por cima <strong>de</strong> suas faces <strong>de</strong> quarenta anos, que há pouco<br />

pareciam <strong>de</strong> trinta, porque as refrescava o reflexo do jubilo intimo, obra da esperança que lhe assegurava veria<br />

ele com brevida<strong>de</strong> os entes prediletos <strong>de</strong> sua alma, escorriam agora lagrimas lentas, e nelas se lia, em vez do<br />

prazer, a dor, a aflição, o <strong>de</strong>sespero. Foi fácil a todos os circunstantes conhecer a súbita mudança, porque a<br />

esse momento o dia estava claro, e a aurora iluminava o céu e a terra com reflexos que nenhum pintor po<strong>de</strong><br />

ainda reproduzir na tela.<br />

Gil, sentindo a gravida<strong>de</strong> daquela crise, correu ao matuto, lançou-lhe os braços sobre os ombros, e disse-lhe<br />

em face:<br />

- Então, que é isso, Francisco? Estás a chamar a todo instante por teu filho e tua mulher? Não vês que não<br />

po<strong>de</strong>m estar aqui?<br />

- Mas então on<strong>de</strong> estão eles, comandante? Na casa do padre Antonio não há ninguém. Já cansei <strong>de</strong> bater na<br />

porte. Ninguém me falou <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro. Oh! Meu Deus! Por aqui andou <strong>de</strong> certo o Tunda-Cumbe. Malvado!<br />

Malvado! Tu me pagarás.<br />

- Isto, sim, disse Gil, conhecendo que a loucura um momento iminente ia fugindo, espancada pelo sentimento<br />

da vingança, que acordara enfim, para salvá-lo, no coração do matuto. Havemos <strong>de</strong> vingar-nos <strong>de</strong>sses<br />

perversos, que queimam as casas pacificas e levantam ranchos para novos salteadores. Não percamos tempo.<br />

Salta no teu cavalo. Quem sabe o que não estarão praticando a esta hora na vila os infames bandoleiros.<br />

Vamos, Francisco. Quero-te a meu lado.<br />

O matuto saltou sobre o castanho. Tinha os olhos e as faces em fogo. Na respiração sentia calor <strong>de</strong>

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!