15.04.2013 Views

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

curte a pobreza <strong>de</strong>ste esplendida e orgulhosa cida<strong>de</strong> - primeira capital da América do Sul.<br />

Em um rancho ou garapeira que se via algumas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> passos antes da povoação, estavam<br />

reunidos, por uma noite <strong>de</strong> 1706, á roda <strong>de</strong> um fardo <strong>de</strong> fazendas, vários matutos que voltavam do Recife,<br />

on<strong>de</strong> tinham ido ven<strong>de</strong>r algodão. Entre eles havia dois almocreves das proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Goiana, um por nome<br />

Francisco, o outro Victorino.<br />

O rancho não era mais do que o prolongamento da garapeira, com a qual tinha comunicação interior.<br />

Era, como são tais pontos, apenas envarado até meia altura e coberto <strong>de</strong> telhas. De um lado estava a longa<br />

manjedoura em que os cavalos dos rancheiros passavam a noite aproveitando, <strong>de</strong> mistura com alguns pés <strong>de</strong><br />

capim, cortados <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>, os talos e retraços que nela tinham <strong>de</strong>ixado os cavalos dos rancheiros na noite<br />

anterior. Do outro lado o alpendre mostrava-se inteiramente livre, como convinha, a fim <strong>de</strong> terem os hospe<strong>de</strong>s<br />

espaço para as suas re<strong>de</strong>s, que eles armavam <strong>de</strong> um enchamel para outro, e don<strong>de</strong> a qualquer hora da noite<br />

podiam ver os seus animais alguns passos <strong>de</strong> distância, comendo se havia o que, ou estudando como muitas<br />

vezes acontecia. O dono da garapeira, responsável pela segurança dos animais, fechava as portas do puxado<br />

quando via os rancheiros recolhidos, e só reaparecia ai <strong>de</strong> madrugadinha para receber <strong>de</strong>stes a respectiva<br />

paga. Muitas vezes, estava ele ainda <strong>de</strong>itado quando ouvia uma voz que lhe dizia:<br />

- Aqui fica o dinheiro, seu Ignacio.<br />

Era a voz do rancheiro, o qual punha por baixo da porta a quantia <strong>de</strong>vida. Nunca nenhum se ausentou sem ter<br />

primeiro cumprido o seu <strong>de</strong>ver, com a proverbial probida<strong>de</strong> do matuto e do sertanejo do norte.<br />

No tocante ao traje, ver um dos matutos era o mesmo que ver os <strong>de</strong>mais. Camisa por cima <strong>de</strong> ceroulas <strong>de</strong><br />

algodão - eis em que ele consistia.<br />

Todos tinham os pés nus, e quase todos por cima do cós das ceroulas o longo cinto <strong>de</strong> fio, cofre portátil on<strong>de</strong><br />

traziam o dinheiro, terminando em cordões com bolotas nas pontas, os quais serviam para dar muitas voltas<br />

em torno da cintura antes do laço final. Metida entre o cinto e o cós guardava cada um sua faca <strong>de</strong> ponta presa<br />

pela orelha da bainha. Da arma só aparecia o cabo, figurando a cabeça <strong>de</strong> uma serpente que tinha o restante do<br />

corpo oculto.<br />

Já era noite, e <strong>de</strong>ntro do rancho lançava crepuscular clarida<strong>de</strong> o can<strong>de</strong>eiro <strong>de</strong> azeite, que pendia, por uma<br />

corda corrediça, <strong>de</strong> um dos caibros da coberta.<br />

Alguns dos rancheiros estavam com as mangas arregaçadas como se foram prestes para entrar em pugilato <strong>de</strong><br />

vida e morte.<br />

E <strong>de</strong> feito não era <strong>de</strong> outro gênero o mister ou a luta que os ajuntara ali, uns <strong>de</strong> pé, outros inclinados sobre a<br />

barriga, todos com as vistas concentradas na superfície do fardo, on<strong>de</strong> uma taboa se pusera para servir <strong>de</strong> base<br />

a dois braços diferentes que nesse momento se alçaram e logo após se uniram pelas mãos, ficando firmes<br />

sobre os cotovelos. Um dos pegadores da queda-<strong>de</strong>-braço chamava-se Manoel Francisco; o outro era o<br />

Victorino. A queda-<strong>de</strong>-braço era já nesse tempo em gran<strong>de</strong> uso entre os almocreves do norte.<br />

Manoel Francisco era acaboclado, feio, baixo, grosso e reforçado; Victorino procedia <strong>de</strong> mulata e mameluco,<br />

era seco,, nervoso e <strong>de</strong> semblante bem assombrado.<br />

- Sustenta o motivo, Mané Francisco, senão Victorino te lambe - disse um dos circunstantes, quando viu os<br />

braços inimigos se entesarem e ouviu o fardo ranger aos primeiros ensaios das duas forças que se<br />

experimentavam e mediam para uma gran<strong>de</strong> luta, posto que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> acanhada arena.<br />

- Este braço que estão vendo - respon<strong>de</strong>u Manoel Francisco - tem botado abaixo enquanto o inimigo esfrega<br />

um olho, muito curema rebingudo das ribeiras do Ceará e do Piauí.<br />

- Agora é que havemos <strong>de</strong> ver ele para quanto presta, e se tudo isto o que você está dizendo não passa <strong>de</strong> uma<br />

história, retorquiu Victorino. Quando quiser cair, diga.<br />

- Se você é homem, mostre agora o seu talento - replicou Manoel Francisco, retesando o braço, como quem<br />

queria entrar sem <strong>de</strong>tença no momento <strong>de</strong>cisivo.<br />

Pegaram-se <strong>de</strong>finitivamente os dois atletas.<br />

O braço <strong>de</strong> Manoel Francisco dava dois do <strong>de</strong> Victorino; mas a resistência que encontrou neste, fez que não<br />

passasse nem uma linha da posição em que <strong>de</strong> principio se colocara. Eram duas pirâmi<strong>de</strong>s pétreas, imóveis,<br />

inabaláveis, uma talhada para competir com a outra na rijeza e na resistência.<br />

A queda-<strong>de</strong>-braço tem graça justamente quando os lutadores me<strong>de</strong>m forças iguais. Dá-se então o que é natural<br />

<strong>de</strong> pleitos idênticos. Divi<strong>de</strong>m-se as opiniões sobre a probabilida<strong>de</strong>s da vitoria. Uns, levando em conta as<br />

condições físicas dos combatentes, não hesitam em <strong>de</strong>cretar, para o que lhes parece mais favorecido <strong>de</strong> tais<br />

circunstancias, as honras da peleja; outros publicam que essas honras hão <strong>de</strong> caber, não a este mas àquele<br />

contendor, autorizados por prece<strong>de</strong>ntes ou por outros muitos elementos <strong>de</strong> indução e convicção. Fora da arena<br />

dos pelejadores reais, forma-se uma arena em que começam <strong>de</strong> porfiar os assistentes á pugna, discutindo,<br />

altercando, apostando cada qual pelo que supõe ter por se mais probabilida<strong>de</strong>s para o vencimento.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!