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O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio

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antes or<strong>de</strong>m da recoleta do Recife, exigindo que eu sem perda <strong>de</strong> tempo me dirija a Paraíba, a fim <strong>de</strong> levantar<br />

os ânimos do capitão-mór João da Maia, que começam a resfriar. Esta provi<strong>de</strong>ncia foi resolvida pelo padre<br />

João da Costa, a quem <strong>de</strong>vo gran<strong>de</strong>s benefícios, e pelos Drs. Ferreira Castro e Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Aragão,<br />

conselheiros do governo dos mascates. Não contentes com incumbir-me <strong>de</strong>ste gravíssimo mister, exigem que<br />

eu me ponha a caminho <strong>de</strong> hoje para amanhã. Neste sentido recebi, à entrada da noite, nova carta <strong>de</strong> frei José<br />

<strong>de</strong> Monte Carmelo, que Antonio Coelho me mandou trazer por Pedro <strong>de</strong> Lima. entre as três e as quatro horas<br />

da madrugada hão <strong>de</strong> estar por aqui os meus companheiros <strong>de</strong> jornada à Paraíba. Oh, que colisão cruel,<br />

Marcelina?<br />

- E seu padre vai fazer este serviço aos mascates? Perguntou a cabocla.<br />

- Eu <strong>de</strong>ixo o Cajueiro, mas, aqui em particular, que ninguém nos ouça, <strong>de</strong>vo dizer-te: não vou nem para<br />

Paraíba, nem para Goianinha. Vou para... Nem sei para on<strong>de</strong> vou eu. Vou fugindo <strong>de</strong> mascates e <strong>de</strong> nobres.<br />

- Mas, meu Deus, como há <strong>de</strong> ser isso? Pois vosmecê nos <strong>de</strong>ixa assim?<br />

Nem uns nem outros têm razão, Marcelina. São exagerados ambos em suas paixões. Cegou-os a vaida<strong>de</strong>, o<br />

interesse, o capricho con<strong>de</strong>nável. Deviam estimar-se e auxiliar-se mutuamente como dantes; mas não;<br />

hostilizam-se, como se fossem dois povos bárbaros e inimigos, como se não tivessem laços comuns - a mesma<br />

nacionalida<strong>de</strong>, a mesma religião, a mesma língua, as mesmas leis. Porque é que brigam eles? Por um<br />

pedacinho <strong>de</strong> governo? Por uns vinténs <strong>de</strong> mais ou <strong>de</strong> menos? Por uma vila? Mas em uma terra imensa, como<br />

esta, que ainda por muitos séculos há <strong>de</strong> ser um mundo universo, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rão aposentar-se todas as nações<br />

da Europa, brigar por uma vila, por um engenho, um armazém, uma loja, um assento no senado da câmara, é<br />

dar testemunho <strong>de</strong> ter o entendimento obscurecido pelas trevas da ignorância ou da loucura. Querem <strong>de</strong>struirse<br />

os dois loucos? Pois <strong>de</strong>struam-se, como querem; eu é que não hei <strong>de</strong> ir meter-me entre eles dois. Ambos<br />

são meus irmãos; mas como não posso nem mesmo com um só <strong>de</strong>les, quanto mais com ambos juntos? O<br />

recurso que tenho é <strong>de</strong>ixá-los pegados até que, pela dor física, pelo sangue <strong>de</strong>rramado, pela fome criem ambos<br />

medo à luta e volte um para a loja e o outro para o engenho a tratar, já com as paixões castigadas e o juízo<br />

claro, dos seus interesses particulares. O padre inclinou a cabeça, como quem meditava, e, passado um<br />

momento, voltando-se para Marcelina, disse-lhe com evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sprazer e tristeza:<br />

- Vou passar ao segundo ponto <strong>de</strong> minha confissão.<br />

- Seu padre po<strong>de</strong> falar, que eu estou ouvindo com toda a atenção, respon<strong>de</strong>u a cabocla.<br />

E sentou-se para escutar melhor.<br />

O padre prosseguiu assim a sua confi<strong>de</strong>ncia:<br />

- Abro o livro da minha vida sacerdotal para ler a triste e vergonhosa historia que te quero confiar.<br />

Custa-me por extremo volver a folha negra em que está escrita, além <strong>de</strong>sta historia, a minha própria<br />

con<strong>de</strong>nação. Mas fio que serás indulgente para os culpados. Na juventu<strong>de</strong>, Marcelina, são veementes<br />

e cegas as paixões, a carne obra como tirana; a fantasia, mais tar<strong>de</strong> estrela <strong>de</strong> branda luz, não passa<br />

então <strong>de</strong> chama afogueada - ilumina, mas queima. Quando chega a ida<strong>de</strong> madura, e o entendimento,<br />

como magistrado intimo, examinando, apreciando e julgando os atos da mocida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>scobre os<br />

montões <strong>de</strong> cinzas a que o fogo da paixão juvenil reduziu sentimentos e princípios respeitáveis, e por<br />

baixo <strong>de</strong>ssas cinzas fundos abismos e tenebrosas sepulturas; quando a razão, já educada pelos anos e<br />

fortalecida com o conhecimento exato das coisas, transmite à consciência suas severíssimas leis, e<br />

exige o preenchimento <strong>de</strong>las, a frágil personalida<strong>de</strong> humana não tem para sua <strong>de</strong>fesa outra voz além<br />

<strong>de</strong>sta: ‘Perdão, ó homens! Perdão, ó Deus!’ Presta atenção, Marcelina. É chegado o momento do<br />

terrível sacrifício. Vou enfim abrir a teus olhos o lugar mais recôndito do meu coração. Não te aterres<br />

com o espetáculo, nem digas a ninguém que <strong>de</strong>baixo das cinzas <strong>de</strong> minha velhice se aninha uma<br />

serpente que me pren<strong>de</strong>, como anel <strong>de</strong> fogo, ao inferno.<br />

- - Seu padre! exclamou a cabocla, profundamente abalada. Juro-lhe que lhe guardarei segredo até à<br />

morte. Houve aqui há anos uma terrível epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> bexigas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Recife até à Paraíba. Morreu<br />

gente sem conta por esses povoados e estradas afora. Tu hás <strong>de</strong> estar lembrada.<br />

- Ainda me lembro <strong>de</strong>ssa peste. Se eu estive às portas da morte...<br />

Pois bem. Por esse tempo achava-me eu no convento <strong>de</strong> Iguarassú, don<strong>de</strong>, por or<strong>de</strong>m do bispo, parti para<br />

Tres-la<strong>de</strong>iras, a fim <strong>de</strong> prestar os socorros espirituais à pobreza, que estava aí morrendo no maior <strong>de</strong>samparo e<br />

impenitência. Uma noite <strong>de</strong> muita chuva, tenho ainda na memória bem frescos todos os passos, especialmente<br />

os primeiros do meu erro, quando eu voltava <strong>de</strong> um sitio aon<strong>de</strong> tinha ido ouvir <strong>de</strong> confissão um moribundo,<br />

XXI

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