O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
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A botada tendo caído em um sábado, ficou Francisco com o menino para passar o Domingo.<br />
De manhã muito cedinho, Lourenço achou-se <strong>de</strong> pé, contentando a vista no movimento que lhe oferecia a<br />
novida<strong>de</strong>. Não se fartava <strong>de</strong> ver os negros passar com feixes <strong>de</strong> lenha e <strong>de</strong> bagaço para alentarem o fogo da<br />
fornalha. Ia e vinha com eles, fazia-lhes perguntas sobre diferentes coisas que observava, mas não<br />
compreendia. Recebia as explicações com visível prazer.<br />
Norando que voltava aos partidos a buscar novos feixes <strong>de</strong> canas, um carro que acabava <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scarregado á<br />
porta do engenho, Lourenço saltou sobre a mesa <strong>de</strong>le e <strong>de</strong>ixou-se conduzir aos canaviais <strong>de</strong> açúcar, coisa que,<br />
para bem dizermos, só conhecia <strong>de</strong> nome.<br />
Quando suas vistas a<strong>de</strong>jaram por sobre aquele mundo <strong>de</strong> verdura, experimentou sua alma indizível impressão<br />
<strong>de</strong> contentamento.<br />
Eis o que o menino viu.<br />
Formando um cordão, os negros estavam ali a cortar com afiadas foicinhas <strong>de</strong> mão as canas que outros iam<br />
<strong>de</strong>spojando das folhas e atirando no campo, assim privadas da sua ver<strong>de</strong> plumagem. Gran<strong>de</strong>s pilhas <strong>de</strong>las<br />
mostravam-se do meio do imenso tapete <strong>de</strong> folhas. As hastes, pouco antes graciosas, estavam agora nuas e<br />
sem elegância. Sua formosa roupagem cobria o seu leito <strong>de</strong> morte.<br />
Na véspera tinha sido distribuído aos negros fato novo, que eles traziam ainda sobre o corpo, visto que a festa<br />
emendara com o Domingo. Com suas ceroulas e camisas azuis, seus chapéus <strong>de</strong> palha <strong>de</strong> pindoba, tão novos<br />
como a roupa, figuravam eles uma linha <strong>de</strong> soldados que <strong>de</strong>rribava matos para assaltar fortificações inimigas.<br />
Levando os olhos ao lado oposto ao <strong>de</strong> que vinha o corte, o menino só <strong>de</strong>scobriu ai estendido mares <strong>de</strong> folhas<br />
ondulantes. Eram os canaviais novos, que agitavam seus panos <strong>de</strong> verdura ao sabor das virações campesinas.<br />
Lourenço voltou do engenho perdido por ele. A festa tornara-o expansivo e contador <strong>de</strong> historias, tudo o que<br />
com ele se passara, e o que vira, foi referido circunstancialmente a Marcelina, não esquecendo o menino nem<br />
as quedas-<strong>de</strong>-corpo que pegará com outros meninos na bagaceira.<br />
- Se meu pai tivesse um engenho, a coisa havia <strong>de</strong> ser outra - dizia ele <strong>de</strong> quando em quando no curso da<br />
narração.<br />
- E porque não há <strong>de</strong> ter? inquiriu Marcelina. Se tu nos ajudares, no fim <strong>de</strong> alguns anos po<strong>de</strong>remos comprar<br />
uma engenhoca, ou ao menos um torcedor. Do torcedor vai á engenhoca, e da engenhoca ao engenho. Tu bem<br />
vês que todos nós trabalhamos. On<strong>de</strong> está Francisco? Foi á vila ven<strong>de</strong>r abacaxis. Eu, como vês, estou fazendo<br />
minhas esteiras para ele levar a quem as encomendou aqui adiante, na encruzilhada. Só tu não trabalhas ainda.<br />
E queres um engenho! Sem trabalhares não hás <strong>de</strong> ter nem <strong>de</strong> comer nem <strong>de</strong> vestir, quanto mais engenho.<br />
Pensando consigo só, Lourenço levantou-se sem dizer palavra, <strong>de</strong>u volta pelo sitio, e tornou á salinha da casa,<br />
que era a oficina <strong>de</strong> Marcelina. Esta o viu arrastar um tamborete para junto <strong>de</strong>la e uma rodilha <strong>de</strong> cipós para<br />
junto <strong>de</strong> si. Sentando-se no tamborete, o menino cortou os cipós pelo modo e medida que Marcelina lhe<br />
ensinou, e hei-lo a trabalhar pela primeira vez <strong>de</strong>pois da sua chegada ao Cajueiro.<br />
Vendo-o exercitar tão vem a sua ativida<strong>de</strong> espontaneamente, como tocado <strong>de</strong> celeste inspiração, Marcelina<br />
não pô<strong>de</strong> suster as lagrimas. Lourenço, a seus olhos, acabava <strong>de</strong> dar testemunho <strong>de</strong> emenda, resultado da<br />
constância e paciência com que ela o dirigia para o bem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia <strong>de</strong> sua chegada.<br />
Estava <strong>de</strong> feito ali uma conquista do seu esforço abençoado por Deus, inquebrantável esteio dos crentes.<br />
VII<br />
Uma manhã encaminhou-se Lourenço á mata, armado com um facão afim <strong>de</strong> cortar sambaquis <strong>de</strong> que<br />
precisava para umas gaiolas, que lhe tinham encomendado. Este serviço ele o costumava realizar nas horas<br />
vagas.<br />
Trabalhar já era uma lei <strong>de</strong> seu espirito. Adquirir meios <strong>de</strong> comprar um engenho foi idéia que nunca mais o<br />
abandonou, antes constituiu a sua primeira e mais forte ambição. Por isso não perdia tempo, ou antes<br />
Marcelina o não <strong>de</strong>ixava per<strong>de</strong>r.<br />
Tinham já passado muitos meses <strong>de</strong>pois dos primeiros acontecimentos referidos nos capítulos anteriores.<br />
Colocado em novo centro e sujeito a novas leis morais, Lourenço avançava admiravelmente na requesta do<br />
bem, <strong>de</strong>spertando cada dia em seus pais, por seu procedimento , novas esperanças e sendo para eles origem <strong>de</strong><br />
inefáveis satisfações.<br />
A transformação era obra das mãos <strong>de</strong>les, na qual se reviam não sem justo orgulho, como na fonte limpa,<br />
outr’ora charco, se revê o que lhe tirou as imundícies.<br />
Por isso Lourenço era já, não somente estimado mas acariciado pelos dois consortes, que o consi<strong>de</strong>ravam o