O Matuto, de Franklin Távora Fonte: TÁVORA, Franklin ... - Saco Cheio
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manteve até que suce<strong>de</strong>u o levante do Recife, em que tomou parte, que veremos.<br />
- Então, menino cantador, disse o Tunda-Cumbe a Lourenço, com entono e arrogância mais <strong>de</strong> quem agredia,<br />
do que perguntava - será certo que você está apaixonado pela Bernardina? Pois olhe, quero preveni-lo <strong>de</strong> uma<br />
coisa, para que <strong>de</strong>pois não vá você chamar-se ao engano. Sabe muito bem que todas as semanas, da Sexta<br />
para o sábado, ando eu por estas bandas a ven<strong>de</strong>r o meu peixe.<br />
- Sei, disse Lourenço, sem se alterar, com os olhos postos, como quem nisso tinha propósito, na funda cicatriz<br />
do Tunda-Cumbe não tão oculta pelo espesso bigo<strong>de</strong>, que se não pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>ixar ver.<br />
- Pois fique sabendo mais que aquilo é tainha que eu tenho contado há <strong>de</strong> cair, mais dia, <strong>de</strong>ntro do meu caçuá.<br />
- Você refere-se a Bernardina?<br />
- A ela mesma é que me estou referindo, sim, senhor.<br />
Pois eu também quero dizer-lhe uma coisa. Eu com ela nada tenho. Se canto e gracejo com a rapariga, é<br />
porque tenho amiza<strong>de</strong> na casa. Nela não tenho intenção <strong>de</strong> espécie nenhuma, porque, quando a gente não<br />
sente inclinação para uma mulher, por muito que ela se <strong>de</strong>rrengue para a gente, não passa tudo isso <strong>de</strong><br />
divertimento sem malda<strong>de</strong>. Mas como diz você que já conta com aquela tainha no seu caçuá, a coisa muda <strong>de</strong><br />
figura.<br />
- Menino - tornou o Tunda-Cumbe, você para Ter comigo esta linguagem, preciso fora primeiro que ou não<br />
estivesse no seu juízo, ou não me conhecesse <strong>de</strong>vidamente. Saberá acaso com quem é que está falando?<br />
- Sei muito bem que estou falando com seu Manoel Gonçalves Tunda-Cumbe.<br />
Pois então veja d’ora em diante como anda. Depois não vá dizendo que Santo Antonio o enganou.<br />
- Você é que parece estar enganado comigo, retorquiu-lhe Lourenço, sentindo faiscar-lhe já os olhos. Eu há<br />
muito tempo não faço uma das minhas, mas, em ocasião se oferecendo, não lhe hei <strong>de</strong> torcer a cara, e bem<br />
po<strong>de</strong> acontecer quem para ficar você melhor assinalado, lhe vá eu <strong>de</strong>ixar no queixo direito o golpe que lhe<br />
falta para fazer parelha com o que lhe plantaram no outro queixo, quando você tinha o oficio <strong>de</strong> partejar na<br />
santa terrinha.<br />
A violência <strong>de</strong>sta represália <strong>de</strong>ixou perplexo, e como espantado por momentos o Tunda-Cumbe, pouco<br />
habituado, não obstante a tunda sabida, a ouvir cara a cara tão pesadas reprimendas.<br />
Não conhecia ele o Lourenço senão <strong>de</strong> o ver uma vez por outra almocrevando, e pensou que com a simples<br />
ameaça, sendo tão conhecido por seus feitos que, em abono da verda<strong>de</strong>, davam para um in-fólio, levaria logo<br />
o terror ao animo do rapaz. o seu <strong>de</strong>sengano foi formal, ou como quem procurava recursos e força <strong>de</strong>ntro em<br />
se mesmo, Tunda-Cumbe esteve um instante sem proferir palavra, dizendo porém mil coisas pelos olhos que<br />
não arredou <strong>de</strong> sobre a cara <strong>de</strong> Lourenço.<br />
- Não embatuque por tão pouco, acrescentou este como em acrescentamento do pouco caso em que revelara<br />
ter o seu agressor. O que você disse está dito; não queira agora tornar atrás, que você seria mais <strong>de</strong>sprezível<br />
do que a besta em que costuma ven<strong>de</strong>r o seu peixe velho e moído, se recuasse <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sta avançada. Agora,<br />
<strong>de</strong> que eu sou capaz <strong>de</strong> fazer o que prometi, você a seu tempo há <strong>de</strong> ter a prova. E para que fique logo<br />
conhecendo que eu não sou <strong>de</strong> caixas encoiradas e que aon<strong>de</strong> vou não mando, veja lá como me ponho já a<br />
<strong>de</strong>rreter com a filha <strong>de</strong> seu Victorino, mesmo aqui nos seus bigo<strong>de</strong>s.<br />
Todo este dialogo, posto que faiscante e eriçado <strong>de</strong> perigos, não foi pressentido por nenhum dos circunstantes,<br />
a não ser por Francisco. Este mesmo o não teria testemunhado se não fora a circunstância especial que<br />
diremos. Ao chegar, talvez por fugir <strong>de</strong> ser convidado a cantar, se colocara por traz <strong>de</strong> umas esteiras, que<br />
tinham sido postas <strong>de</strong> pé em um dos cantos do casebre. Foi daí que tudo viu e ouviu sem ser visto, oculto pela<br />
concorrência.<br />
Lourenço, se bem o disse, melhor fez. Logo que se lhe ofereceu ocasião, caiu no meio da roda. Fez o seu<br />
sapateado, <strong>de</strong>u meia dúzia <strong>de</strong> castanholas, atirou uma embigada na rapariga que lhe ficava mais perto, e foi<br />
colocar-se ao pé do violeiro, fronteiro à Bernardina, que ainda estava <strong>de</strong>liciando os sambistas com suas<br />
graciosas vozes.<br />
Quando Bernardina conheceu que Lourenço tinha ido colocar-se ali para alternar com ela as cantigas,<br />
empali<strong>de</strong>ceu, mas sorriu. O <strong>de</strong>safio lhe era agradável, posto que fosse mais forte do que ela o seu contendor.<br />
De seu natural vaidosa e leviana, nunca recusou <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> apreço a Lourenço, embora tivesse o<br />
coração quase todo ocupado pela imagem <strong>de</strong> Saturnino.<br />
Lourenço cantou este verso:<br />
Boca <strong>de</strong> cravo da Índia,<br />
Dentes <strong>de</strong> marfim dourado,<br />
Quando meus olhos te viram,<br />
Meu corpo fez um pecado.<br />
Bernardina respon<strong>de</strong>u com est’outro: