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Weekend 1197 : Plano 56 : 1 : P.gina 1- - Económico

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O MEU OLHAR<br />

João Lobo Antunes<br />

Vacinas<br />

Em 1798, Edward Jenner, um<br />

médico inglês a quem se<br />

deve também a primeira<br />

descrição da arteriosclerose<br />

das coronárias, descreveu,<br />

num artigo que ficou famoso,<br />

o benefício que se obtinha na prevenção<br />

da varíola com a inoculação em humanos<br />

do líquido colhido das vesículas<br />

que apareciam nas tetas de vacas que sofriam<br />

de uma doença apropriadamente<br />

chamada “vaccinia”. Ele observara que<br />

as mulheres que mugiam animais infectados<br />

tinham uma forma mais ligeira de<br />

varíola, e assim surgiu a primeira vacina.<br />

A importância da descoberta foi fenomenal:<br />

em meados do século XVIII, uma<br />

em cada treze crianças morria de varíola<br />

e muitas mais ficavam cegas pelas úlceras<br />

que se desenvolviam na córnea.<br />

Quer teólogos, quer muitos médicos<br />

(católicos e protestantes), opuseram-se<br />

ferozmente à inoculação, por entenderem<br />

que a varíola era um castigo de Deus<br />

pelos pecados dos homens, castigo a que<br />

nos deveríamos submeter resignadamente,<br />

e a vacina era uma violação da lei<br />

divina. Assim pregava o Rev. Edward<br />

Moosey num sermão que intitulou “The<br />

Dangerous and Sinful Practice of Innoculation”!<br />

Um teólogo mais progressista<br />

argumentava, por seu lado, que as pústulas<br />

que cobriram Job eram obra do demónio<br />

e, assim, lutar contra elas era lutar<br />

do lado da vontade divina. A verdade<br />

é que a prática da vacina foi progressivamente<br />

adoptada e no final do século XIX<br />

a mortalidade da varíola era de 1 em<br />

1.600 infectados, e hoje ela quase desapareceu<br />

da face da Terra.<br />

Não se pense, contudo, que a resistência<br />

às vacinas por razões ideológicas é<br />

fenómeno do passado. Já no nosso tempo,<br />

grupos ultraconservadores norte-<br />

-americanos, por exemplo, têm-se<br />

oposto à vacinação de raparigas jovens<br />

contra o vírus do papiloma humano, cuja<br />

eficácia contra o aparecimento do cancro<br />

do colo do útero parece não oferecer<br />

dúvida. A razão invocada é que a vacina<br />

poderia favorecer a promiscuidade sexual<br />

e comportamentos tão censuráveis<br />

como o sexo pré-conjugal...<br />

É evidente que a vacinação contra o<br />

vírus H1N1 não suscita qualquer controvérsia<br />

vincada por preconceitos ideológicos<br />

ou religiosos, mas a verdade é que a<br />

sua aplicação como medida profilática<br />

universal, suscitou questões que não são<br />

exclusivamente médicas, ou seja, de natureza<br />

puramente científica ou técnica.<br />

A presente epidemia ou pandemia,<br />

como os responsáveis sanitários preferem<br />

chamar para realçar a dimensão<br />

epidemiológica mundial, avaliada pela<br />

taxa de infecção e disseminação global,<br />

que estamos a viver é de algum modo<br />

uma experiência nova partilhada universalmente<br />

pelas novas tecnologias<br />

de informação. De facto, assistimos à<br />

progressão da infecção em tempo real,<br />

caso após caso, dia após dia, alastrando<br />

como o óleo derramado no oceano por<br />

um petroleiro como o casco arrombado.<br />

Assim se vai contabilizando cada morte,<br />

o que contrasta com a indiferença perante<br />

outras epidemias como a malária,<br />

que mata por ano um milhão de crianças!<br />

Não importa agora discutir se esta gripe é<br />

mais ou menos grave do que outras “gripes”,<br />

embora, provavelmente, o risco<br />

seja menor que a “espanhola” do início<br />

do séc. XX, mas então os meios de combate<br />

às complicações que surgiam eram<br />

quase inúteis.<br />

O que é especial acerca desta gripe é<br />

também que nunca como agora, governantes<br />

e autoridades sanitárias estiveram<br />

sob tão cerrado escrutínio. Afinal,<br />

como não me canso de citar, a política foi<br />

sempre uma medicina em larga escala.<br />

Para a indústria, a gripe foi uma “bonanza”<br />

e a corrida à vacina que é, em regra,<br />

uma corrida de fundo, transformou-se<br />

num ‘sprint’ vertiginoso.<br />

Como sucede com outras um dos óbices<br />

da aplicação da vacina contra a gripe<br />

releva, fundamentalmente, do risco que<br />

pode comportar, que é realmente impossível<br />

de prever para cada caso singular.<br />

É sabido que persiste uma disputa<br />

sobre se vacinas como a “tríplice”, que<br />

se administra aos bebés, não é responsável<br />

pelo aparecimento mais tarde do autismo.<br />

Só nos E.U.A. há mais de 5.300 de<br />

pedidos de indemnização baseados nessa<br />

suposição, em relação à qual não há a<br />

mínima prova cientifica. Para compensar<br />

as vítimas ocasionais das complicações<br />

das várias vacinas, criou-se naquele<br />

país um organismo que analisa cada<br />

caso e indemniza a vítima sempre que<br />

haja evidência segura de causalidade.<br />

Sem isto, a indústria desistiria rapida-<br />

É evidente<br />

que a vacinação<br />

contra o vírus H1N1<br />

não suscita qual<br />

quer controvérsia<br />

vincada por<br />

preconceitos<br />

ideológicos<br />

ou religiosos,<br />

mas a verdade é que<br />

a sua aplicação como<br />

medida profilática<br />

universal, suscitou<br />

questões que não<br />

são exclusivamente<br />

médicas, ou seja,<br />

de natureza<br />

puramente científica<br />

ou técnica<br />

Outlook | Sábado, 19.12.2009 | 11<br />

mente de fabricar vacinas.<br />

A questão da obrigatoriedade da vacina,<br />

assumida como dever moral de todos<br />

os prestadores da saúde – que incluem<br />

não só médicos e enfermeiros, mas também<br />

pessoal auxiliar e até porteiros e<br />

recepcionistas –, é complexa, porque,<br />

em certa medida, fere o principio da autonomia.<br />

É razoável assumir que a vacinação<br />

deste pessoal é uma medida importante<br />

de saúde publica e o estado de<br />

Nova Iorque declarou a sua obrigatoriedade.<br />

Imediatamente, os trabalhadores<br />

alvo reagiram, argumentando que isso<br />

era uma violação de direitos fundamentais,<br />

e que qualquer analogia com a varíola,<br />

cuja vacinação obrigatória se<br />

não contesta, era inapropriada, pois a<br />

gripe não tem gravidade comparável. Se<br />

asaúdeeasegurançadosdoenteséuma<br />

prioridade tal que permite excepções<br />

em relação à primazia dos direitos<br />

individuais, é matéria que será esclarecida<br />

nos tribunais.<br />

Mas este não é a único dilema ético<br />

suscitado pela pandemia, pois as questões<br />

da prioridade na vacinação e da definição<br />

de quem é imprescindível surgem,<br />

naturalmente, neste contexto. Se a<br />

vacina estivesse desde início disponível<br />

em quantidade tal que fosse assegurada a<br />

sua aplicação a todos, o principio da<br />

equidade era facilmente respeitado.<br />

Tal não sucedendo, se adoptarmos uma<br />

ética utilitarista deveriam favorecer-se,<br />

acima de tudo, os profissionais de<br />

saúde e aqueles que, doentes ou não, encerram<br />

maior risco. Poderá ainda alegar-se,<br />

invocando o principio da reciprocidade,<br />

que os profissionais, porque<br />

correm maior risco, mereciam ser<br />

vacinados primeiro.<br />

Se analisarmos a situação a nível<br />

mundial não há uniformidade de critérios<br />

quanto à definição de prioridades ou<br />

de grupos de risco, e o exemplo mediático<br />

dos responsáveis políticos cujo objectivo,<br />

compreensível, foi a demonstração<br />

de que não temem os possíveis riscos de<br />

vacina é de dúbia importância. De facto,<br />

aqui, como noutras áreas que implicam<br />

comportamentos de risco, como o sexo<br />

não protegido ou os desportos radicais,<br />

cada pessoa tende a aceitar o risco em<br />

que incorre voluntariamente, mas não<br />

aceita o risco que lhe é imposto, mesmo<br />

quando a evidência é débil como, por<br />

exemplo, sucede com as linhas de alta<br />

tensão perto de sua casa.<br />

Eu creio que uma das proveitosas lições<br />

desta pandemia é que é importante<br />

que exista uma rede de confiança que<br />

envolva todos os cidadãos, médicos e<br />

outros trabalhadores da saúde e respectivas<br />

instituições e governantes. Esta<br />

forma de solidariedade é indispensável<br />

para o melhor uso dos recursos e a não<br />

exclusão daqueles que são mais vulneráveis,<br />

mesmo quando, como parece estar<br />

a acontecer em todo o mundo, acabam<br />

por sobejar as vacinas...

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