Weekend 1197 : Plano 56 : 1 : P.gina 1- - Económico
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Anos 20 em Nova Iorque<br />
Dois coreógrafos fazem um elogio à música de<br />
Gershwin em forma de dança. Pelo meio, trazem-nos<br />
um espectáculo inesquecível que fala de fantasmas<br />
vinte em Nova Iorque!” dizia<br />
“Quesortetervinteanosnosanos<br />
Ernest Hemingway. E com razão<br />
– como se prova no espectáculo que<br />
ontem estreou no Grande Auditório da<br />
Culturgest, ‘Good Morning, Mr. Gershwin’,<br />
e que ainda pode ver hoje, às<br />
21h30m e amanhã pelas 17h00m.<br />
Inspirados nos fantasmas da Broadway<br />
onde divagam ‘pin up’s’, cinema e músicas<br />
cantadas pelos melhores intérpretes,<br />
José Montalvo e Dominique Hervieu oferecem-nos<br />
um poema visual cheio de sensualidade,<br />
sonho e fantasia. ‘Good Morning,<br />
Mr. Gershwin’ é uma ode coreográfica<br />
que serve de tributo ao compositor<br />
americano Gershwin, que tão bem escreveu<br />
para a dança.<br />
Depoisde,emMaiode2008,teremmontado,<br />
a convite da Ópera de Lyon, ‘Porgy<br />
and Bess’, de George Gershwin, os dois coreógrafos<br />
voltam a inspirar-se no compositor<br />
americano nesta nova obra. Percebe-se<br />
porquê: os três partilham o facto de partirem<br />
de melodias e danças populares (o folclore<br />
judeu e o jazz, no caso de Gershwin, a<br />
dança hip-hop ou africana, no caso dos co-<br />
reógrafos) e trabalharem-nas de forma erudita.<br />
Numa escondida representação da segregação<br />
racial, somos, inicialmente, seduzidos<br />
por uma Broadway dos anos 20. Num<br />
estilodedançahipnotizadorecomumafesta<br />
submarina projectada numa tela onde<br />
vemos sereias voluptosas, os intérpretes<br />
deslumbram-nos os sentidos e adormecem<br />
adesconfiançadoquepoderávir.Eaverdade<br />
é que os acordes de ‘The Man I Love’<br />
anunciam a tempestade. ‘Summertime’ é o<br />
êxtase dos duetos masculinos. Belos, sérios<br />
e pesados. ‘Porgy’ abre as portas do inferno.<br />
Em George Gershwin e em Montalvo-<br />
-Hervieu tudo assenta na escrita, na sintaxe<br />
e no ritmo que atravessam os temas. Vestidos<br />
com as cores do mundo de hoje, os dois<br />
coreógrafos presenteiam os espectadores<br />
com um espectáculo inesquecível. Um espectáculo<br />
onde a moral da história vem disfarçada<br />
com talento, ima<strong>gina</strong>ção e muita<br />
música. Para a tentar encontrar, já sabe<br />
ondecomeçar:GrandeAuditóriodaCulturgest.<br />
Bilhetes a 20 euros. Menores de 30 pagam<br />
cinco euros.<br />
LUÍSA DE CARVALHO PEREIRA<br />
Outlook | Sábado, 19.12.2009 | 19<br />
A MINHA FICÇÃO<br />
Patrícia Reis<br />
Do imenso frio<br />
de ser só<br />
O vento rasgava a pele e o corpo temia em ajeitar-se<br />
numa dança, puxando para a direita, descompassado.<br />
Por fim: a porta do registo criminal da nova cidade da<br />
Justiça de Lisboa, para os lados do Parque das Nações,<br />
antigo edifício embargado que o Estado fez o favor de<br />
maquilhar com lagos artificiais e demais arvoredo.<br />
A mulher entrou na urgência de se poupar à<br />
temperatura cruel. Assim que a porta de vidro se fechou<br />
apressou-se a retirar a senha para o atendimento. A sala<br />
estava gelada e vazia. Os números no placard digital<br />
pareciam estar igualmente congelados. A mulher<br />
esfregou as mãos e optou por se sentar. À sua frente<br />
estava o maior espectáculo de neve dos últimos anos.<br />
Recordou-se das idas ao circo e à pista de gelo quando<br />
era mais pequena. Claro que em criança o frio não se faz<br />
sentir, mas isso é uma coisa que se esquece depois,<br />
quando o corpo começa a atraiçoar-nos.<br />
Os funcionários do atendimento da secção do registo<br />
criminal, empenhados nos seus computadores, exibiam<br />
o pior dos ares, o mais triste, qual filme de Charlie<br />
Chaplin. Os sobretudos sobre as pernas, os cachecóis<br />
nos pescoços, os dedos vermelhos do frio.<br />
A mulher aguardou a sua vez e, perante o funcionário<br />
enregelado, perguntou:<br />
Não têm ar condicionado? Aquecedores?<br />
Ó minha senhora, aqui não há nada disso.<br />
A pergunta podia ter desatado as línguas, mas fez-se<br />
um silêncio sepulcral. A mulher sentiu que a solidão de<br />
se ser apenas um funcionário público estava ali bem<br />
patente. Um edifício novinho em folha que não foi<br />
pensado para albergar as suas funções. Em pleno século<br />
XXI é, no mínimo, triste. Mais tarde, nesse dia, passou<br />
pelas instalações do mesmo serviço nos Restauradores.<br />
Os empregados estavam já congelados. Não havia<br />
atendimento possível. A mulher abrigou-se de novo,<br />
certidões na mão, e fez-se ao entardecer da cidade.<br />
Pensou que lhe apetecia escrever em letras grandes algo<br />
como “Do imenso frio de se ser só”.<br />
Escritora