Isaac Kerstenetzky - Biblioteca - IBGE

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Isaac Kerstenetzky: um tributo ao mestre Jane Souto de Oliveira * Conheci Prof. Isaac, ao fi nal dos anos 1960, na Escola de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC/RJ. Alunos do bacharelado de Economia, vivíamos intensamente aqueles anos de mobilização social, irreverência cultural e protesto político, exemplarmente ilustrados nas fi guras de dois de nossos colegas – Vladimir Palmeira e Sidney Miller. Nos pilotis da entrada do prédio novo, ponto de encontro e espaço preparatório das passeatas e greves que se sucediam contra o regime autoritário, Vladimir, líder estudantil já então na clandestinidade, fazia uma de suas aparições relâmpago e conclamava os universitários a novas formas de ação política. Em outro banco daquela mesma entrada, Sidney, poeta-compositor em tempo integral e aluno bissexto do curso de Economia, dedilhava ao violão os acordes de uma nova canção, que se tornaria mais tarde uma espécie de alegoria daqueles tempos. Pois é, pra quê? (Sidney Miller) O automóvel corre, a lembrança morre O suor escorre e molha a calçada A verdade na rua, a verdade no povo A mulher toda nua, mas nada de novo A revolta latente que ninguém vê E nem sabe se sente, pois é, pra quê? ...O imposto, a conta, o bazar barato O relógio aponta o momento exato da morte incerta, a gravata enforca o sapato aperta, o país exporta. E na minha porta, ninguém quer ver Uma sombra morta, pois é, pra quê? * A autora entrou no IBGE em agosto de 1971, a convite dos Professores Isaac Kerstenetzky e Eurico de Andrade Neves Borba, como assessora da Presidência. Participou do Grupo Projeto da Matriz de Relações Intersetoriais e, posteriormente, do Grupo Projeto de Indicadores Sociais que, já na condição de Departamento, chefi ou no período de 1977 a 1980. É Economista, Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional – UFRJ/MN, e Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ/IMS.
Isaac Kerstenetzky, fomentador das estatísticas brasileiras: perfi l do cientista e do humanista Em nossas barricadas do desejo, misturavam-se, o sonho de Martim Luther King, a luta revolucionária de Guevara, as sessões de cinema no Payssandu, as músicas de Bob Dylan e Joan Baez, os shows no teatro Opinião, o protesto político dos festivais de música, a audácia e o medo. Relembro isso, agora, para assinalar um traço distintivo de nosso homenageado. Naqueles tempos em que as palavras de ordem eram a liberação de costumes e a contestação de todas as formas de poder; em que saímos para ouvir música e dançar com muitos de nossos professores; em que com eles tomávamos chope e discutíamos as possibilidades e as vias da tão almejada mudança, tratando-os quase que invariavelmente pelo prenome, nosso homenageado era respeitosa e unanimemente chamado de Professor Isaac. Havia como que uma distância reverencial que nos levava a assim chamá-lo. Nele reconhecíamos a autoridade de mentor intelectual e admirávamos a formação erudita, a imensa bagagem cultural, que transpunha, em muito, as fronteiras da Economia, a generosidade na partilha deste conhecimento. Ao mesmo tempo em que estimulava em nós o prazer da leitura, o gosto pela pesquisa, a descoberta do saber, Prof. Isaac era o maior entusiasta de nossos acertos. Desse entusiasmo fala uma história que se propagou rapidamente nos corredores da PUC: Prof. Isaac havia abonado todas as faltas de nosso companheiro Sidney Miller ao saber que ele era o autor da música O circo. Era a contrapartida do cientista social ao poeta. Ambos, grandes. Foi por suas mãos e pelas do querido amigo Eurico de Andrade Neves Borba, ele também professor e economista da PUC/RJ, que cheguei ao IBGE, no início dos anos 1970, auge do ciclo autoritário e do que fi cou conhecido como o “milagre econômico” brasileiro. Em consonância com a doutrina de segurança nacional e com o peso atribuído ao planejamento pelo regime militar, prioridade básica foi dada à produção de informações. Vultosos recursos fi nanceiros e humanos foram alocados ao IBGE que teve reforçado seu papel de produtor e coordenador do sistema estatístico nacional. Paralelamente, os efeitos dos instrumentos de controle e censura, fortemente acionados, à época, se refl etiram também na produção do órgão. Eram tempos em que não se podia falar de “gatos” e, quando deles se falava, recorria-se a uma linguagem metafórica que os transmutava em “felinos de quatro patas” (OLIVEIRA, 2003). É nesse quadro que ganha relevo a gestão, na presidência do IBGE, de um cientista social da envergadura do Prof. Isaac, buscando estabelecer a difícil ponte entre os limites impostos pelo regime autoritário e as demandas de informação que afl oravam da sociedade. Uma ponte que ele procurou construir, passo a passo, mediante o estímulo à refl exão crítica dentro do IBGE, o alargamento de suas pesquisas, a introdução de novas abordagens de análise, a articulação de quadros históricos do órgão a quadros recém saídos da universidade e a criação de convênios com centros nacionais e internacionais de pesquisa. Nesse processo, contou sempre – e sempre fez questão de sublinhar isso – com o apoio do economista João Paulo dos Reis Velloso que, na condição de Ministro do Planejamento, não apenas o chamou para exercer a presidência do IBGE, mas garantiu as condições para que a mudança no IBGE pudesse ser empreendida. Assim, ao mesmo em tempo em que adequava o IBGE às novas tecnologias de informação, criando o Instituto de Informática e agilizando o processo de coleta, sistematização e disseminação das informações estatísticas, Prof. Isaac nos desafi ava, a todos, com textos que indagavam: Is it time to stop counting? Sua abertura intelectual favoreceu abordagens interdisciplinares, impulsionou a combinação de métodos quantitativos e qualitativos na rotina de trabalho institucional, seu compromisso ético levou a que temas como pobreza e desigualdade fossem priorizados no âmbito dos estudos e levantamentos do órgão. Difícil expressar o signifi cado dessa inovação transformadora, produzida por Prof. Isaac ao longo dos dez anos em que esteve à frente do IBGE. Ainda que a mim tenha cabido focalizar sua contribuição no que se refere mais propriamente ao social, penso que ele seria o primeiro a questionar uma demarcação rígida de fronteiras entre o social, o econômico e o geográfi co. E isto porque foi fundamentalmente uma concepção integrada de sistema de informação, o que sempre pontuou o pensamento e a prática de Prof. Isaac como mestre, pesquisador e condutor de instituições. 183
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