Isaac Kerstenetzky - Biblioteca - IBGE
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186 <strong>Isaac</strong> <strong>Kerstenetzky</strong>: legado e perfi l<br />
Os desdobramentos da controvérsia ultrapassaram, em muito, o círculo dos economistas<br />
no qual se inscrevera inicialmente. Ao focalizar a iníqua distribuição de renda<br />
no País, a controvérsia ajudou a redirecionar a produção intelectual da esfera acadêmica<br />
e da esfera do planejamento, fazendo com que temas como os da pobreza e da<br />
desigualdade ganhassem visibilidade e viessem a se inscrever como questões centrais<br />
do pensamento social do período.<br />
Nessa direção, uma outra iniciativa de Prof. <strong>Isaac</strong> merece especial destaque. Refi<br />
ro-me, aqui, àquela que seria a maior e mais detalhada pesquisa sobre o padrão de<br />
consumo da população jamais feita no País – o Estudo Nacional da Despesa Familiar<br />
- ENDEF – aplicado em todo o Território Nacional entre 1974 e 1975.<br />
Vindo ao encontro de orientações da Divisão de Políticas Alimentares e de Nutrição<br />
da Food and Agriculture Organization - FAO e benefi ciando-se de pesquisas de<br />
consumo alimentar realizadas anteriormente em países da África, bem como do aporte<br />
trazido por técnicos franceses responsáveis pela pesquisa de múltiplos propósitos realizada<br />
em 1970, no Peru, o ENDEF tornar-se-ia um marco na história de levantamentos<br />
dessa natureza (VASCONCELLOS, 2001).<br />
Além de cobrir características da família, da mão-de-obra e do domicílio, o EN-<br />
DEF destinava-se a levantar o conjunto de despesas (moradia, alimentação dentro e fora<br />
do domicílio, vestuário, transporte, educação, saúde, lazer e recreação), além dos níveis<br />
de endividamento de uma amostra de aproximadamente 55 000 unidades familiares,<br />
representativa do conjunto da população brasileira.<br />
Embora fosse uma pesquisa transversal, o peso do componente alimentar – prevendo<br />
o acompanhamento diário de todas as refeições feitas na unidade familiar, com a<br />
descrição, pesagem e preço dos alimentos consumidos durante uma semana – traduzia<br />
nitidamente o intuito de analisar a extensão e a gravidade do fenômeno da pobreza no<br />
País e de identifi car situações de risco nutricional.<br />
Com o “rigor da balança”, instrumento que pela primeira vez seria incorporado a<br />
uma pesquisa de âmbito nacional sobre padrões de vida, se buscava, literalmente medir<br />
os índices de desnutrição que estudos esparsos e localizados já vinham detectando em<br />
associação com o aumento das taxas de mortalidade infantil em algumas regiões do<br />
País. De fato, os dados do ENDEF provaram que o problema nutricional não era de qualidade<br />
da dieta, como supunham alguns estudiosos baseados em estatísticas de morbimortalidade,<br />
mas sim de quantidade ingerida. Os resultados preliminares da pesquisa<br />
evidenciaram que parcela importante dos brasileiros queimava a proteína ingerida para<br />
gerar a energia de que necessitava e que essa insufi ciência da quantidade de energia<br />
ingerida era uma expressão da renda familiar insufi ciente (VASCONCELLOS, 2001).<br />
Em poucas palavras, ao abrir espaço no âmbito das pesquisas do <strong>IBGE</strong>, para o<br />
levantamento das condições de vida da população, a contribuição de Prof. <strong>Isaac</strong> foi decisiva<br />
para que o social e, em particular, a determinação dos níveis de pobreza absoluta,<br />
emergissem como questão prioritária do planejamento e para que se registrasse uma clara<br />
infl exão na retórica ofi cial. Se, à época do milagre econômico (1968-1973), o lema crescer<br />
para distribuir trazia implícito que a pobreza se resolvia com emprego, e este, por sua vez,<br />
com o crescimento econômico; no momento seguinte, a pobreza emergiria como questão<br />
específi ca. A propósito, convém lembrar ter sido no II Plano Nacional de Desenvolvimento<br />
(1974-1978) que, pela primeira vez, o social se explicitou como objetivo específi co. E que<br />
a orientação básica para os trabalhos na linha de indicadores sociais produzidos pela esfera<br />
federal foi a de dar prioridade àqueles destinados a medir as variações nos níveis de<br />
bem estar material e especialmente a situação de pobreza absoluta, conforme Exposição<br />
de Motivos n o 005, do Conselho de Desenvolvimento Social, de 15.06.1975.<br />
Para os que limitam o sentido da obra à produção escrita, o legado do Prof. <strong>Isaac</strong><br />
poderá parecer pequeno, de vez que se traduz em poucos textos. Para estes, Prof. <strong>Isaac</strong><br />
seria um intelectual de muitos inputs e poucos outputs. Mas para os que, como nós,<br />
desfrutamos de seu convívio, na universidade e no planejamento, a verdade é outra.<br />
Sabemos de sua importância chave para o desenvolvimento da pesquisa social no Brasil<br />
e somos testemunhas de que Prof. <strong>Isaac</strong> aliava, como poucos, o espírito dos mestres à<br />
coragem dos criadores de instituições.