Isaac Kerstenetzky - Biblioteca - IBGE
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<strong>Isaac</strong> <strong>Kerstenetzky</strong>, fomentador das estatísticas brasileiras:<br />
perfi l do cientista e do humanista<br />
mente era outra poderosa fonte de admiração pelo precursor 7 . Em função de tudo o que<br />
vimos discutindo até aqui, lançar-se como continuador de uma lenda da memória institucional<br />
como Teixeira de Freitas representaria uma perigosa identifi cação. No limite,<br />
inviabilizaria sua própria ambição. Se constituir um Instituto de pesquisas sociais com<br />
o seu nome parecia impossível, a presidência de um <strong>IBGE</strong> em franco processo de crise<br />
certamente acenava com a realização de sua utopia pessoal.<br />
A condenação moral à gestão <strong>Kerstenetzky</strong> logo se esvai, quando atentamos para<br />
o alcance de suas contribuições e para a “governabilidade” necessária ao plano de reestruturação<br />
do <strong>IBGE</strong>, somente possível diante de uma releitura da memória, mesmo que<br />
esquemática. Refundar o <strong>IBGE</strong> era também refundar sua memória. E, como dissemos<br />
antes, o legado foi rompido para melhor ser renovado. Este rompimento ensejou tanto<br />
suas ambições particulares quanto sua administração vitoriosa.<br />
A institucionalização da moderna e sistemática pesquisa social passou pelo anonimato<br />
do ideário cívico. Ao fazer um forte contraste antigo/moderno, a nova direção<br />
pretendeu reduzir o sistema estatístico até então vigente a uma simples rede de coleta.<br />
Assim procedendo, ela sublimava os novos trabalhos técnico-científi cos da Casa como<br />
um marco de ruptura central. Entretanto, estes trabalhos, ao pretenderem inspirar políticas<br />
públicas, denunciam a fl agrante fi liação ao ideário cívico. Se pensarmos esta fi -<br />
liação em termos de inserção política do <strong>IBGE</strong>, a questão que se coloca é de tradução.<br />
Não mais as diretrizes de ação idealizadas do antigo ideário, mas sim proposições que<br />
só poderiam ser elaboradas a partir das análises dos trabalhos técnico-científi cos do<br />
Instituto, sustentadas por um planejamento mediado pela quantifi cação estatística. No<br />
lugar de um ideário sistemático, o novo <strong>IBGE</strong> oferecia uma estrutura de investigação<br />
social que, ao descortinar múltiplas realidades no cruzamento dos universos econômico<br />
e social, instrumentalizava a intervenção do Estado.<br />
Paradoxal o papel que desempenhou a administração <strong>Kerstenetzky</strong>. Precisou<br />
criar marcos de ruptura com o passado para poder implementar seu projeto. Porém,<br />
este mesmo projeto, que instituía o profi ssional técnico e a pesquisa científi ca especializada,<br />
enquanto buscava esvaziar as referências personalizadas do passado, modernizou<br />
antigas bandeiras como a da “vocação social” do Instituto. E o fez precisamente<br />
por nunca tê-la evocado, mas por ter pretendido inventá-la, por meio dos estudos da<br />
geografi a sobre urbanização e metropolização, das novas redes de pesquisa dos indicadores<br />
e de estudos como o ENDEF.<br />
A propósito, um excelente exemplo desse caráter de centro de investigações sociais<br />
que <strong>Isaac</strong> buscou sedimentar no <strong>IBGE</strong> é uma iniciativa ainda pouco conhecida: o<br />
Estudo das Informações Não Estruturadas do ENDEF. Trata-se de uma pesquisa qualitativa<br />
de grandes proporções, feita paralelamente ao ENDEF. Nela, os agentes de campo<br />
tornavam-se os informantes, relatando suas experiências in loco. Nossos objetivos<br />
aqui presentes nos impõem restrições quanto à análise da profunda inovação teóricometodológica<br />
deste empreendimento, da seriedade e competência de sua elaboração e<br />
do alcance ainda menosprezado de seu pioneirismo. Na verdade, estamos falando, sem<br />
medo de errar, do primeiro estudo sobre fome e nutrição no Brasil. Os primeiros relatos<br />
tomados dos “agentes-informantes” davam conta da inadequação de certos procedimentos<br />
previstos no ENDEF sobre os itinerários dos pesquisadores. Normas como a de<br />
fazer a pesagem dos alimentos no almoço da família pesquisada, durante os sete dias<br />
da abordagem, a partir das “sobras” das refeições, pressupunham equivocadamente<br />
que haveria almoços e, mais ainda, suas “sobras”. Os primeiríssimos relatos escritos 8 ,<br />
conhecidos antes mesmo do início da apuração do ENDEF, demonstravam, de maneira<br />
7 <strong>Isaac</strong> <strong>Kerstenetzky</strong> devia bem conhecer as realizações de seu antecessor Macedo Soares, assim como algo sobre o pensamento de<br />
Teixeira de Freitas. Sua trajetória no <strong>IBGE</strong> confi rma a assertiva, pois ela se inicia já em 1956, na qualidade de representante da Fundação<br />
Getúlio Vargas no Conselho Nacional de Estatística, enquanto a última edição de Problemas de base do Brasil é de 1958.<br />
8 Já no momento de confecção dos questionários e do manual do pesquisador, foi incluída, sob iniciativa de Luiz Aff onso<br />
Parga Nina, uma folha ao questionário do agente de campo do ENDEF. Esta folha constava de um quadro inteiramente<br />
aberto (“observações sobre a unidade pesquisada”), no qual o pesquisador deveria representar a sua experiência subjetiva<br />
no convívio com as famílias selecionadas pela amostragem.<br />
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