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INTRODUÇÃO
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oculto aquilo que eles mesmos porventura ignoram, motivo pelo qual repreendem
desatinadamente a opinião da multidão. Os primeiros, pela sua excessiva modéstia,
por outro lado não alheia à grandeza de ânimo, os quais se dão conta de que os
seus escritos são aprovados pelos sábios e piedosos, mas de tal forma se temem
do juízo críticos deles que hesitam em dá-los a público. E assim a perversa paixão
humana de dizer mal, que desenfreadamente se cevou nas obras dos outros, impediu
que se aplicassem aos estudos as capacidades intelectuais de muitos, e sobretudo de
Portugueses, por tal forma que, embora sobressaíssem pelas boas artes e inteligência,
todavia raramente se atreveram a publicar.
De quanto maior louvor é merecedor Jerónimo de Azambuja, varão provido de
excepcional saber e virtude, lustre da Ordem dos Pregadores, uma vez que este receio
não o embargou de mandar para o prelo os seus trabalho e, em conformidade com
as suas capacidades, olhar pelo proveito da Igreja! Por conseguinte, a presunção dos
demais não apenas não o obrigou por medo a desviar-se dos piedosos e sagrados
estudos, mas também, o que escrevera com o máximo desvelo e trabalho, tratou
de imprimi-lo sem qualquer receio dos detractores, a fim de poder aumentar a
piedade cristã e ser de proveito aos amigos e útil aos demais. É que não deu a
lume frivolidades ou coisas que estejam adaptadas ao gosto popular (como amiúde
acontece), mas, imitando Platão, que ensinou que os varões sérios se devem abster
das comédias, 48 ou seja, das coisas vãs e que são de somenos importância, com
o máximo comedimento e modéstia a todos presenteou com aquilo que com uma
penetração intelectual incomum coligiu durante muito tempo na interpretação da
Bíblia sagrada, e deu agora finalmente à luz da publicidade, para utilidade comum
e em benefício das letras: os doutos e piedosos Comentários aos livros de Moisés,
a que chamam Pentateuco, que escrevera com saber e desvelo excepcionais.
Quão grande erudição e saber mostrou nesta empresa, fique a outros o avaliá-
‐lo, mas o que nesta obra me parece notável é que não só explica o sentido da
Escritura, mas de forma muito sábia aplica-a aos usos e costumes da vida e consorcia
admiravelmente a explicação da letra com o espírito da mesma. É que muitos de
tal maneira estão amarrados ao que está escrito que rejeitam o sentido divino da
mesma letra e, ao tempo que se cingem sobejamente à letra, estão a negligenciar o
espírito. Com este procedimento afastam-se muitíssimo não apenas de Crisóstomo
(de quem o Autor parece seguir as pisadas), de Hilário, de Cirilo, de Jerónimo, de
Agostinho, de Bernardo e de outros varões santíssimos, mas também divergem de
Paulo, esplendor da inteira Teologia. Com efeito, falando em Gl 4. 24 acerca dos
filhos de Abraão, extraindo o espírito e doutrina das palavras sagradas, afirma que
muitas coisas foram ditas por alegoria, e em muitas outras passagens, aos Coríntios,
aos Hebreus e alhures (que por amor da brevidade aqui remeto ao silêncio) nas
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Possível alusão a Leis, 816e-817a. É certo que Platão se pronunciou, mas mais concretamente
contra a tragédia, em outros conhecidos passos: República, 568c e 605e-606a; Górgias, 502d-
‐e; Filebo, 816d-817e.