a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Reconstituindose sua manhã um tanto ociosa, <strong>de</strong>scobrirseá que ela<br />
refletia acerca <strong>de</strong> questões triviais: relações amorosas passageiras; amiza<strong>de</strong>s <strong>na</strong>s<br />
quais confiava; seu modo <strong>de</strong> ser agradável. Enfim, tentava situarse diante <strong>de</strong> si<br />
mesma, mas s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> revelar nesse fato uma certa ironia sobre o seu próprio<br />
modo <strong>de</strong> ser. O dado que nos parece mais revelador <strong>na</strong> <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>sses instantes<br />
s<strong>em</strong> muitos abalos, vamos assim colocar, é que ela estava a fazer bolinhas <strong>de</strong> pão à<br />
mesa do café, algo que mesmo assim lhe exigia um certo esforço <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória. Muito<br />
já se falou sobre a importância que os acontecimentos mais triviais adquir<strong>em</strong> <strong>na</strong><br />
<strong>na</strong>rrativa <strong>de</strong> Lispector. Ao burilar <strong>de</strong>spretensiosamente as sobras <strong>de</strong> miolo <strong>de</strong> pão<br />
por sobre a mesa do café, as mãos <strong>de</strong> escultora da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>, num gesto<br />
inconsciente, artesa<strong>na</strong>lmente constrói uma pirâmi<strong>de</strong> social. Vale conferir a<br />
passag<strong>em</strong>:<br />
Da mesa on<strong>de</strong> me atardava porque tinha t<strong>em</strong>po, eu olhava <strong>em</strong> torno<br />
enquanto os <strong>de</strong>dos arredondavam o miolo <strong>de</strong> pão. O mundo era um<br />
lugar. Que me servia para viver: no mundo eu podia colocar uma<br />
bolinha <strong>de</strong> miolo <strong>na</strong> outra, bastava justapôlas, e, s<strong>em</strong> mesmo<br />
forçar, bastava pressionálas o suficiente para que uma superfície se<br />
unisse a outra superfície, e assim com prazer eu ia formando uma<br />
pirâmi<strong>de</strong> curiosa que me satisfazia: um triângulo reto feito <strong>de</strong> formas<br />
redondas, uma forma que é feita <strong>de</strong> suas formas opostas. Se isso<br />
me tinha um sentido, o miolo <strong>de</strong> pão e meus <strong>de</strong>dos provavelmente<br />
sabiam (LISPECTOR: 1998, 2930).<br />
Do mesmo modo como a forma da experiência <strong>de</strong> vida da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> já<br />
se manifestara anteriormente como autoquestio<strong>na</strong>mento, aqui, novamente, ela<br />
retoma o processo <strong>de</strong> “alertar” o leitor para o movimento <strong>de</strong>sor<strong>de</strong><strong>na</strong>do do texto,<br />
sintomaticamente, sob o efeito do seu drama pessoal. Entretanto, há mais a<br />
acrescentar ao <strong>de</strong>senho ilógico que sobressai das sobras <strong>de</strong> miolo <strong>de</strong> pão. A “forma<br />
que é feita <strong>de</strong> suas formas abertas”, a pirâmi<strong>de</strong> burilada pela perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>, tanto<br />
representa o plano <strong>de</strong>scontínuo da <strong>na</strong>rrativa, que vai se <strong>de</strong>lineando, ao revés da<br />
ord<strong>em</strong> positiva do “contexto <strong>de</strong> superfície”, quanto passa a significar uma alusão,<br />
uma crítica sublimi<strong>na</strong>r á verticalizada divisão que se opera <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classes.<br />
No primeiro ex<strong>em</strong>plo vejase que a <strong>na</strong>rrativa cont<strong>em</strong>pla o esboço <strong>de</strong> uma<br />
cartografia espiralada <strong>em</strong> esmerada correspondência dialética com o conflito social<br />
da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>. Nesse sentido, o movimento orbital do texto apresentase como<br />
uma refração do seu fluxo <strong>de</strong> pensamentos. Assim, o seu inconsciente reproduzse<br />
no relato que ela se dispõe a escrever. Por conseguinte, penetrar <strong>na</strong>s franjas <strong>de</strong>sse<br />
26