a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
“Olheia, a barata: eu a odiava tanto que passava para o seu lado, solidária com ela,<br />
pois não suportaria ficar sozinha com minha agressão” (LISPECTOR:1998, 58).<br />
O que minha linha <strong>de</strong> raciocínio preten<strong>de</strong> alcançar é o princípio <strong>de</strong><br />
contradição que se instaura no processo <strong>de</strong> elaboração da imag<strong>em</strong> alegórica, <strong>de</strong><br />
acordo com a leitura que apreendo <strong>de</strong> Walter Benjamin; aquele, como se verá<br />
adiante, aparece traduzido <strong>na</strong> busca incessante da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> para a resolução do<br />
seu conflito. Nesse sentido, o percurso <strong>de</strong> sua via crúcis estaria a preencher a<br />
concepção dialética sublinhada <strong>na</strong> coexistência entre passado e presente, elaborada<br />
por Benjamin no conceito <strong>de</strong> alegoria: “As alegorias são no reino do pensamento o<br />
que são as ruí<strong>na</strong>s no reino das coisas” (1984, 200). Dirseia, então, que o fluxo dos<br />
pensamentos da <strong>na</strong>rradora correspon<strong>de</strong> a um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sarrui<strong>na</strong>mento <strong>de</strong> sua<br />
<strong>de</strong>rrocada:<br />
No <strong>de</strong>smoro<strong>na</strong>mento, toneladas caíram sobre toneladas. E quando<br />
eu, G.H. até no couro das valises, eu, uma das pessoas, abri os<br />
olhos, estava – não sobre escombros pois até os escombros já<br />
haviam sido <strong>de</strong>glutidos pelas areias – estava numa planície<br />
tranqüila, quilômetros e quilômetros abaixo do que fora uma gran<strong>de</strong><br />
cida<strong>de</strong>. As coisas haviam voltado a ser o quer eram.<br />
O mundo havia reivindicado a sua própria realida<strong>de</strong>, e, como <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> uma catástrofe, a minha civilização acabara: eu era ape<strong>na</strong>s um<br />
dado histórico. [...] (LISPECTOR: 1998, 69).<br />
Conscientizandose <strong>de</strong> que s<strong>em</strong>pre fora um objeto coisificado <strong>na</strong><br />
socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classes à qual pertencia, G.H. passa a rasurar o que para ela ao longo<br />
do t<strong>em</strong>po se constituíra como sua “segunda <strong>na</strong>tureza”, ou seja, o status quo; o fato<br />
<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada uma “G.H. até <strong>na</strong>s valises”. Desse momento <strong>em</strong> diante, seu<br />
autoquestio<strong>na</strong>mento revelarseá como a construção <strong>de</strong> um olhar negativamente<br />
positivo a partir da ord<strong>em</strong> racio<strong>na</strong>lizada da realida<strong>de</strong> metafísica que lhe servira <strong>de</strong><br />
mo<strong>de</strong>lo para a construção da imag<strong>em</strong> reluzente <strong>de</strong> uma mulher cujo nome era<br />
sinônimo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no meio social do qual participava. Contraditoriamente, <strong>de</strong> forma<br />
indireta, ela irá se dar conta da realida<strong>de</strong> que arrebentava com sua vida diária<br />
através do olhar invasivamente multifacetado <strong>de</strong> um reles inseto. Vendo e sendo<br />
vista por este, ela se expõe à inimaginável situação <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com a própria<br />
experiência, portanto, <strong>na</strong> própria práxis, que a vida não se resumia aos valores<br />
sedimentados pelo pensamento da classe domi<strong>na</strong>nte.<br />
51