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a consciência em crise na narrativa de clarice lispector

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Houve um momento gran<strong>de</strong>, parado, s<strong>em</strong> <strong>na</strong>da <strong>de</strong>ntro. Dilatou os<br />

olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas <strong>de</strong> repente num<br />

estr<strong>em</strong>ecimento <strong>de</strong>ram corda no dia e tudo recomeçou a funcio<strong>na</strong>r,<br />

a máqui<strong>na</strong> trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as<br />

folhinhas, os frangos pelados, a clarida<strong>de</strong>, as coisas revivendo<br />

cheias <strong>de</strong> como uma chaleira a ferver. Só faltava o tin­dlen do<br />

relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá­lo e ao<br />

som da música inexistente e ritmada ergue­se <strong>na</strong> ponta dos pés.<br />

Deu três passos <strong>de</strong> dança b<strong>em</strong> leves, alados.<br />

Então subitamente olhou com <strong>de</strong>sgosto para tudo como se estivesse<br />

comido d<strong>em</strong>ais daquela mistura. ‘Oi, oi, oi ...’, g<strong>em</strong>eu baixinho<br />

cansada e <strong>de</strong>pois pensou: o que vai acontecer agora agora agora?<br />

E s<strong>em</strong>pre no pingo <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po que vinha <strong>na</strong>da acontecia se ela<br />

continuava a esperar o que ia acontecer, compreen<strong>de</strong>? [...]<br />

(LISPECTOR: 1980b, 11­12).<br />

Nesta outra seqüência, a submissão do mundo sensível à totalida<strong>de</strong> do<br />

mundo racio<strong>na</strong>l tor<strong>na</strong>­se mais evi<strong>de</strong>nte. A mesma e s<strong>em</strong>pre repetitiva roti<strong>na</strong> diária<br />

parece obe<strong>de</strong>cer ao dispositivo <strong>de</strong> um relógio ao qual alguém teria dado corda.<br />

Nesse sentido, à volta <strong>de</strong> Joa<strong>na</strong>, a máqui<strong>na</strong> do pai movimenta­se como se lhe<br />

tivess<strong>em</strong> incorporado um cavalo <strong>de</strong> força. Daí a associação entre o som que o tac­<br />

tac daquela provoca <strong>na</strong> comparação com o trotar do animal. Perante seus olhos, a<br />

realida<strong>de</strong> surgia­lhe s<strong>em</strong> gosto. O ciclo dos acontecimentos permanecia i<strong>na</strong>lterado.<br />

A visão da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> expunha as contradições do primado da realida<strong>de</strong> que lhe<br />

fora inculcada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância. Logo, entre a lógica causal subsumida <strong>na</strong>quele e o<br />

seu modo <strong>de</strong> percepcioná­lo interpõe­se uma linha tensa, que propicia uma leitura<br />

questio<strong>na</strong>dora do dado <strong>em</strong>pírico.<br />

Observe­se: d<strong>em</strong>onstrando certa inquietu<strong>de</strong> com a falta <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong><br />

do pai para lidar com o modo lúdico com que costumava provocar o comportamento<br />

convencio<strong>na</strong>l daquele diante das situações mais simples do dia­a­dia, eis que ela o<br />

chama à atenção para o fato <strong>de</strong> ter inventado uma poesia. Tratava­se,<br />

simplesmente, <strong>de</strong> d<strong>em</strong>onstrar através da elaboração <strong>de</strong> um breve escrito,<br />

aparent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong>spojado <strong>de</strong> qualquer sentido, como é possível captar <strong>na</strong> instância<br />

do “real” o indizível; portanto, algo que não está dito. Ou, então, dir­se­ia que a<br />

realida<strong>de</strong> concreta seria muito mais ampla do que o seu lado manifesto. Noutros<br />

termos, o “si­mesmo” do pensamento é passível <strong>de</strong> especulação. Veja­se como,<br />

sutilmente, a <strong>na</strong>rradora põe <strong>em</strong> discussão as limitações inerentes aos preceitos<br />

dogmáticos da racio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>.<br />

Papai, inventei uma poesia.<br />

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