a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
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─ Como é o nome?<br />
Eu e o sol. S<strong>em</strong> esperar muito recitou: “As galinhas que estão<br />
no quintal já comeram duas minhocas ma eu não vi”. Sim? Que é<br />
que você e o sol têm a ver com a poesia?<br />
Ela olhouo um segundo. Ele não compreen<strong>de</strong>ra ...<br />
O sol está <strong>em</strong> cima das minhocas, papai, e eu fiz a poesia e não vi<br />
as minhocas ... Pausa. Posso inventar outra agora mesmo: ‘Ó<br />
sol, v<strong>em</strong> brincar comigo’. Outra maior:<br />
‘Vi uma nuv<strong>em</strong> peque<strong>na</strong><br />
coitada da minhoca<br />
acho que ela não viu’.<br />
Lindas, peque<strong>na</strong>, lindas. Como é que se faz uma poesia tão<br />
bonita?<br />
Não é difícil, é só ir dizendo (LISPECTOR: 1980b, 1213).<br />
Entregue às provocações acerca dos paradigmas que constitu<strong>em</strong> seu<br />
universo <strong>de</strong> meni<strong>na</strong>, mais uma vez, flagramos Joa<strong>na</strong> contorcendo a causalida<strong>de</strong><br />
imposta pelo pensamento da figura supr<strong>em</strong>a do pai. Concluído o momento <strong>de</strong><br />
brinca<strong>de</strong>ira <strong>em</strong> que estivera envolvida, a protagonista dirigese a ele, questio<strong>na</strong>ndoo<br />
sobre qual seria a tarefa seguinte a ser cumprida por ela. Impaciente, eis que este<br />
lhe pe<strong>de</strong> para brincar. Imediatamente, ela respon<strong>de</strong>lhe que já encerrara a<br />
brinca<strong>de</strong>ira; obtém como resposta que invente outro brinquedo, pois “brincar não<br />
termi<strong>na</strong>”. A meni<strong>na</strong> insiste que não quer brincar n<strong>em</strong> estudar. Interpelada sobre o<br />
que gostaria <strong>de</strong> fazer, a resposta é <strong>de</strong>sconcertante: “Nada do que sei” ((LISPECTOR:<br />
1980b, 15) Na seqüência, ela estilhaça com as regras que encapsulam o mundo <strong>em</strong><br />
um paradigma predomi<strong>na</strong>nt<strong>em</strong>ente fundamentado <strong>na</strong> razão. Po<strong>de</strong>rseia dizer que o<br />
eixo discursivo <strong>de</strong> sua fala contesta, através do exercício <strong>de</strong> uma brinca<strong>de</strong>ira,<br />
alter<strong>na</strong>do repetidamente pelos advérbios Nunca e Sim, os autoritários valores que<br />
nos são imputados pela socieda<strong>de</strong>. Vale conferir a seqüência:<br />
[...] Ela se afasta fazendo uma trancinha nos cabelos escorridos.<br />
Nunca nunca nunca sim sim, canta baixinho. Apren<strong>de</strong>u a trançar um<br />
dia <strong>de</strong>sses. Vai para a mesinha dos livros, brinca com eles olhando<br />
os à distância. Do<strong>na</strong> <strong>de</strong> casa marido filhos, ver<strong>de</strong> é hom<strong>em</strong>, branco<br />
é mulher, encar<strong>na</strong>do po<strong>de</strong> ser filho ou filha. ‘Nunca’ é hom<strong>em</strong> ou<br />
mulher? Por que ‘nunca’ não é filho n<strong>em</strong> filha? E ‘sim’? Oh, tinha<br />
muitas coisas inteiramente impossíveis. Podiase ficar tar<strong>de</strong>s inteiras<br />
pensando. Por ex<strong>em</strong>plo: qu<strong>em</strong> disse pela primeira vez assim:<br />
nunca?<br />
Papai termi<strong>na</strong> o trabalho e vai encontrála sentada chorando.<br />
Mas que é isso, menininha? pegaa nos braços, olha s<strong>em</strong> susto<br />
o rostinho ar<strong>de</strong>nte e triste.<br />
O que é isso?<br />
Não tenho <strong>na</strong>da o que fazer. [...] (LISPECTOR: 1980b, 15).<br />
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