06.05.2013 Views

a consciência em crise na narrativa de clarice lispector

a consciência em crise na narrativa de clarice lispector

a consciência em crise na narrativa de clarice lispector

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Da família, a reação <strong>de</strong> estranhamento para com sua doença manifestou­<br />

se, selvag<strong>em</strong>ente, através da atitu<strong>de</strong> do pai.<br />

[...] agarrou com a mão direita a bengala do gerente, que este havia<br />

<strong>de</strong>ixado com o chapéu e o sobretudo <strong>em</strong> cima <strong>de</strong> uma ca<strong>de</strong>ira,<br />

pegou com a esquerda um gran<strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l da mesa e, batendo os<br />

pés, brandindo a bengala e o jor<strong>na</strong>l, pôs­se a tocar Gregor <strong>de</strong> volta<br />

ao seu quarto. Nenhum pedido <strong>de</strong> Gregor adiantou, nenhum pedido<br />

também foi entendido; por mais humil<strong>de</strong> que incli<strong>na</strong>sse a cabeça,<br />

com tanto mais força o pai batia os pés. Do outro lado a mãe,<br />

apesar do t<strong>em</strong>po frio, tinha aberto uma vidraça e, curvada para fora,<br />

b<strong>em</strong> distante da janela, comprimia o rosto <strong>na</strong>s mãos. [...] Implacável,<br />

o pai o pressio<strong>na</strong>va, <strong>em</strong>itindo silvos como um selvag<strong>em</strong>. Mas Gregor<br />

ainda não tinha prática <strong>de</strong> andar para trás, as coisas iam realmente<br />

muito <strong>de</strong>vagar. Se pu<strong>de</strong>sse ape<strong>na</strong>s girar o corpo, logo estaria no<br />

seu quarto, mas t<strong>em</strong>ia tor<strong>na</strong>r o pai impaciente com essa operação<br />

que d<strong>em</strong>andava t<strong>em</strong>po e a todo instante a bengala <strong>na</strong> mão <strong>de</strong>le o<br />

ameaçava com um golpe mortal <strong>na</strong>s costas ou <strong>na</strong> cabeça [...]<br />

(KAFKA: 1997, 29­30).<br />

Recuperando­se a imag<strong>em</strong> multifacetada da barata <strong>em</strong> A paixão segundo<br />

G.H., o artifício criado por Kafka surte o mesmo efeito, posto que o pano <strong>de</strong> fundo<br />

sobre o qual se <strong>de</strong>senvolve a mutação do perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> dialoga com uma questão<br />

social. Quando G.H., ao a<strong>de</strong>ntrar o quarto da <strong>em</strong>pregada <strong>de</strong>ixa transparecer <strong>na</strong> sua<br />

atitu<strong>de</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transformação <strong>de</strong> um “eu” <strong>em</strong> “ela” “Eu era aquela a<br />

qu<strong>em</strong> o quarto chamava <strong>de</strong> ‘ela’. Ali entrara um eu a que o quarto <strong>de</strong>ra uma<br />

dimensão <strong>de</strong> ela” estava sugerindo, como já assi<strong>na</strong>lamos, que iria ao encontro <strong>de</strong><br />

sua subjetivida<strong>de</strong> histórica. Em se tratando do perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> kafkiano, t<strong>em</strong>­se,<br />

igualmente, a ence<strong>na</strong>ção <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>. Isolando­se no seu<br />

pequeno quarto, investido da condição <strong>de</strong> um mísero inseto, Gregor se<br />

autoreconhece como um ser com mais dignida<strong>de</strong> do aqueles que lhe eram caros.<br />

Sua morte, mais <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>atiza a <strong>de</strong>scrença nos valores <strong>de</strong> uma “socieda<strong>de</strong><br />

administrada <strong>de</strong> alto a baixo, on<strong>de</strong> os homens estão concretamente separados não<br />

só uns dos outros com também <strong>de</strong> si mesmos (KAFKA: 1997, 17)” do que<br />

propriamente o <strong>de</strong>sfecho do fim <strong>de</strong> uma vida. Novamente, l<strong>em</strong>bramo­nos <strong>de</strong> como a<br />

perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> G.H. se diz assassi<strong>na</strong> <strong>de</strong> si mesma ao matar a barata. No caso do<br />

perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> kafkiano, a <strong>em</strong>pregada é qu<strong>em</strong> anuncia, sob o olhar aliviado dos<br />

Samsa, a morte <strong>de</strong> Gregor. No fi<strong>na</strong>l, ela conclui:” A senhora não precisa se<br />

preocupar com o jeito <strong>de</strong> jogar fora a coisa aí do lado. Já está tudo <strong>em</strong> ord<strong>em</strong>”<br />

(KAFKA: 1997, 83).<br />

74

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!