a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
fi<strong>na</strong>lmente não me escapa, pois enfim a vejo fora <strong>de</strong> mim – eu sou a barata. [...]”<br />
(LISPECTOR: 1998, 65).<br />
Observese esta outra seqüência:<br />
Sim, a barata era um bicho s<strong>em</strong> beleza para as outras espécies. A<br />
boca: se ela tivesse <strong>de</strong>ntes, seriam <strong>de</strong>ntes gran<strong>de</strong>s, quadrados e<br />
amarelos . Como o<strong>de</strong>io a luz do sol que revela tudo, revela até o<br />
possível. Com a ponta do robe enxuguei a testa, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>sfitar os<br />
olhos da barata, e meus próprios olhos também tinham as mesmas<br />
pesta<strong>na</strong>s [...] (LISPECTOR: 1998, 96)<br />
Em si, o ato <strong>de</strong> matar a barata comportaria também a intenção <strong>de</strong> a<br />
perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> autopunirse, <strong>de</strong> culparse, pelo sentimento <strong>de</strong>sprezível, pelo<br />
tratamento diferenciado que s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong>dicara à <strong>em</strong>pregada. Não se <strong>de</strong>ve<br />
<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar a hipótese <strong>de</strong> que, ao transitar da luxuosa sala do seu apartamento<br />
<strong>em</strong> direção ao quarto <strong>de</strong> Ja<strong>na</strong>ir, subtextualmente, a <strong>na</strong>tureza <strong>de</strong> sua atitu<strong>de</strong> irá<br />
repercutir <strong>na</strong> instância <strong>na</strong>rrativa como a <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>atização <strong>de</strong> um inconsciente político<br />
expressão aqui utilizada <strong>na</strong> acepção elaborada por Jameson (1992) como<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretar o texto literário enquanto figuração política e i<strong>de</strong>ológica<br />
da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classes. Dito isso, vejase como o pensador americano recorre a<br />
uma interlocução com a obra La rabouilleuse, <strong>de</strong> Balzac, com o intuito <strong>de</strong> discorrer<br />
acerca do significado sublimi<strong>na</strong>r <strong>de</strong> um acontecimento envolvendo a Restauração<br />
francesa e sua repercussão i<strong>de</strong>ológica no jogo dos interesses familiares <strong>em</strong> disputa:<br />
[...]. Como é concebível que a família gere uma força explosiva<br />
suficiente para arrebatar a fortu<strong>na</strong> <strong>de</strong> seu outro ramo s<strong>em</strong> ser<br />
atingida e <strong>de</strong>struída nesse processo? Quando entend<strong>em</strong>os que a<br />
família é aqui, segundo a lógica canônica do conservadorismo <strong>de</strong><br />
Balzac, a figuração da socieda<strong>de</strong>, fica evi<strong>de</strong>nte que o ‘inconsciente<br />
político’ <strong>de</strong>ste texto está assim levantando, <strong>de</strong> maneira simbólica, as<br />
questões da mudança social e da contrarevolução, [...] (JAMESON:<br />
1992, 174).<br />
Pelo visto, a idéia sugerida <strong>em</strong> outra passag<strong>em</strong> <strong>de</strong> que a barata pu<strong>de</strong>sse<br />
constituirse como um el<strong>em</strong>ento sígnico, isto é, um <strong>de</strong>spistamento da d<strong>em</strong>anda<br />
i<strong>de</strong>ológica do texto parece ganhar corpo. Em torno <strong>de</strong>ssa “figuração”, o discurso <strong>de</strong><br />
G.H. vai erigindose como uma s<strong>em</strong>ântica da culpa (sublinhados meus). Comparar<br />
se a um inseto nojento, <strong>de</strong>sprezível, correspon<strong>de</strong> à sua tentativa <strong>de</strong> expurgar, <strong>de</strong><br />
34