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a consciência em crise na narrativa de clarice lispector

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nenhum gesto meu era indicativo <strong>de</strong> que eu, com os lábios secos<br />

pela se<strong>de</strong>, ia existir (LISPECTOR: 1998, 23).<br />

Embora referido <strong>de</strong>squalificativamente como um apêndice <strong>em</strong> relação as<br />

d<strong>em</strong>ais <strong>de</strong>pendências do apartamento, conforme já assi<strong>na</strong>lamos <strong>em</strong> outro momento,<br />

é lá, <strong>na</strong>quele espaço hostilizado que a dicotomia “patroa­<strong>em</strong>pregada” irá converter­<br />

se numa lógica <strong>em</strong> que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do sujeito opressor – a patroa – far­se­á<br />

mediante o confronto com o oprimido. Esta possibilida<strong>de</strong> aparece sublinhada <strong>na</strong><br />

elocução da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> : “ <strong>na</strong>da me fazia supor que eu estava a um passo da<br />

<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um império. A um passo <strong>de</strong> mim”. Implícito no locus <strong>de</strong> enunciação<br />

da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>­<strong>na</strong>rradora, acho que é possível observar que ela si<strong>na</strong>liza para o<br />

sentido <strong>de</strong> sua auto<strong>de</strong>scoberta que, nesse aspecto, nos leva <strong>de</strong> volta ao princípio <strong>de</strong><br />

contradição ao qual já nos referimos anteriormente:<br />

[...] o que é tor<strong>na</strong>­se efetivamente o que é pela relação com o que<br />

não é. O di<strong>na</strong>mismo do processo é <strong>de</strong> recusa do existente, pela via<br />

da contradição e da resistência. Ele pressupõe uma lógica da não<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, uma i<strong>na</strong><strong>de</strong>quação – no curso da experiência pela qual a<br />

realida<strong>de</strong> efetiva se forma – entre realida<strong>de</strong> e conceito, entre a<br />

existência e sua forma social. O conteúdo da experiência formativa<br />

não se esgota <strong>na</strong> relação formal do conhecimento – das ciências<br />

<strong>na</strong>turais, por ex<strong>em</strong>plo – mas implica uma transformação do sujeito<br />

no curso do seu contato transformador com o objeto <strong>na</strong> realida<strong>de</strong>.<br />

Para isto se exige t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> mediação e continuida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> oposição<br />

ao imediatismo e fragmentação da racio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> formal coisificada,<br />

[...] (MAAR: 2003, 25).<br />

Localizada no quarto da <strong>em</strong>pregada, a primeira constatação da existência<br />

das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais r<strong>em</strong>ete­a à sua infância marcada pela pobreza:<br />

Olhei o quarto com <strong>de</strong>sconfiança. Havia baratas, então. Ou baratas.<br />

On<strong>de</strong>? Atrás das malas talvez. Uma? duas? quantas? Atrás do<br />

silêncio imóvel das malas, talvez toda uma escuridão <strong>de</strong> baratas.<br />

Uma imobilizada sobre a outra? Camadas <strong>de</strong> baratas que <strong>de</strong><br />

súbito me l<strong>em</strong>bravam o que <strong>em</strong> criança eu havia <strong>de</strong>scoberto uma<br />

vez ao levantar o colchão sobre o qual dormia: o negror <strong>de</strong> cente<strong>na</strong>s<br />

e cente<strong>na</strong>s <strong>de</strong> percevejos, conglomerados uns sobre os outros.<br />

A l<strong>em</strong>brança <strong>de</strong> minha infância pobre <strong>em</strong> criança, com percevejos,<br />

goteiras, baratas e ratos, era <strong>de</strong> como um meu passado pré­<br />

histórico, eu já havia vivido com os primeiros bichos da Terra<br />

(LISPECTOR: 1998, 48).<br />

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