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a consciência em crise na narrativa de clarice lispector

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importados da cultura domi<strong>na</strong>nte. Na prática, transplantava­se uma forma <strong>de</strong> pensar<br />

arraigada <strong>na</strong> metrópole, fundamentada <strong>em</strong> textos religiosos “autos e po<strong>em</strong>as” <br />

elaborados sob o crivo dos códigos e convenções da própria língua indíge<strong>na</strong> para o<br />

contexto <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> que lhe era estranha, i<strong>na</strong>preensível. Comparativamente,<br />

imagine­se o receptor <strong>de</strong>ssa interlocução como alguém que, ao guiar um automóvel,<br />

mira o retrovisor como um mecanismo capaz <strong>de</strong> situá­lo <strong>em</strong> relação à realida<strong>de</strong><br />

exter<strong>na</strong>. Nessas circunstâncias, o condutor t<strong>em</strong> ple<strong>na</strong> <strong>consciência</strong> daquilo que se<br />

passa ao seu redor. No ex<strong>em</strong>plo da prática missionária, o contexto <strong>de</strong> referência, o<br />

“espelho retrovisor” funcio<strong>na</strong>va habilmente <strong>de</strong> forma invertida; os interlocutores não<br />

tinham a menor <strong>consciência</strong> <strong>de</strong> que estavam sendo politicamente expropriados <strong>de</strong><br />

sua subjetivida<strong>de</strong>. Eis, afi<strong>na</strong>l, <strong>em</strong> que consiste o papel da heg<strong>em</strong>onia enquanto<br />

instrumento <strong>de</strong> domi<strong>na</strong>ção inserido no contexto sociocultural <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>.<br />

Utiliza­se do sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> significados daquela, incluindo­se toda a realida<strong>de</strong> concreta<br />

os valores éticos, morais, os mecanismos nos quais se fundamenta o sist<strong>em</strong>a<br />

econômico, etc. – com o objetivo <strong>de</strong> difundir sua própria i<strong>de</strong>ologia, <strong>de</strong> forma a atuar,<br />

sutilmente, como agente modificador dos <strong>de</strong>sejos inconscientes do “outro”. Então,<br />

po<strong>de</strong>r­se­ia dizer que heg<strong>em</strong>onia,<br />

[...] Não é forma <strong>de</strong> controle sócio­político n<strong>em</strong> <strong>de</strong> manipulação ou<br />

doutri<strong>na</strong>ção, mas uma direção geral (política e cultural) da<br />

socieda<strong>de</strong>, um conjunto articulado <strong>de</strong> práticas, idéias, significações<br />

e valores que se confirmam uns aos outros e constitu<strong>em</strong> o sentido<br />

global da realida<strong>de</strong> para todos os m<strong>em</strong>bros <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>,<br />

sentido experimentado como absoluto, único e irrefutável porque<br />

interiorizado e invisível como o ar que se respira. Sob essa<br />

perspectiva, heg<strong>em</strong>onia é sinônimo <strong>de</strong> cultura <strong>em</strong> sentido amplo e<br />

sobretudo <strong>de</strong> cultura <strong>em</strong> socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cla ses. (itálicos da autora)<br />

(CHAUÍ: 2006, 97)<br />

Retomando­se à análise <strong>de</strong> A paixão segundo G.H., vamos recuperar a<br />

voz da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>­<strong>na</strong>rradora no seu esforço <strong>de</strong> m<strong>em</strong>ória para l<strong>em</strong>brar­se da<br />

fisionomia <strong>de</strong> sua ex­<strong>em</strong>pregada, Ja<strong>na</strong>ir, a cuja imag<strong>em</strong>, ela faz referência como se<br />

aquela l<strong>em</strong>brasse a presença <strong>de</strong> uma escrava. Reveja­se a sequência:<br />

Os traços <strong>de</strong>scobri s<strong>em</strong> prazer eram traços <strong>de</strong> rainha. E também<br />

a postura: o corpo erecto, <strong>de</strong>lgado, duro, liso, quase s<strong>em</strong> carne,<br />

ausência <strong>de</strong> seios e <strong>de</strong> ancas. E sua roupa? Não era <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r<br />

que eu a tivesse usado como se ela não tivesse presença: sob o<br />

pequeno avental, vestia­se s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong> marrom escuro ou <strong>de</strong> preto, o<br />

que a tor<strong>na</strong>va toda escura e invisível arrepiei­me ao <strong>de</strong>scobrir que<br />

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