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a consciência em crise na narrativa de clarice lispector

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canseira <strong>de</strong> viajar, a preocupação com a troca <strong>de</strong> trens, as refeições<br />

irregulares e ruins, um convívio humano que muda s<strong>em</strong>pre, jamais<br />

perdura, nunca se tor<strong>na</strong> caloroso. O diabo carregue tudo isso!<br />

(KAFKA: 1997, 8).<br />

Aqui, a elocução <strong>de</strong> Gregor, ao mesmo t<strong>em</strong>po que se insinua como autojustificativa<br />

pelo atraso no cumprimento do horário <strong>de</strong> trabalho, expõe o não­dito <strong>de</strong> um discurso<br />

vazado <strong>na</strong> crítica ao sist<strong>em</strong>a capitalista. Embora o silêncio oculte, o contexto<br />

situacio<strong>na</strong>l <strong>em</strong> que a fala é produzida revela a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um sujeito <strong>em</strong> <strong>crise</strong> ao ver<br />

sua força <strong>de</strong> trabalho atrelada ao mecanismo do lucro.<br />

Face <strong>de</strong> uma mesma moeda alie<strong>na</strong>da, as reações dos familiares <strong>de</strong><br />

Gregor, b<strong>em</strong> como as do seu chefe imediato reflet<strong>em</strong> e refratam a mesma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

cumplicida<strong>de</strong> quanto a ignorar o porquê do seu comportamento atípico <strong>na</strong>quela<br />

manhã cuja atmosfera no seio dos Samsa l<strong>em</strong>brava um pesa<strong>de</strong>lo. Entretanto, eles<br />

não se davam conta <strong>de</strong> que o pesa<strong>de</strong>lo vivido pelo filho residia neles mesmos. No<br />

caso da família, metamorfoseado no dinheiro, o qual lhes dava uma boa condição <strong>de</strong><br />

vida; no caso do chefe, com a infalível pontualida<strong>de</strong> no <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho <strong>de</strong> suas<br />

funções <strong>na</strong> <strong>em</strong>presa. Nesse contexto, eles não se perceb<strong>em</strong> como atores do papel<br />

que lhes cabe <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhar no contraponto <strong>de</strong> Gregor com o inseto. Eis, <strong>de</strong> modo<br />

sucinto, duas ce<strong>na</strong>s bastante significativas, as quais se prestam para traçar um<br />

retrato da forma como o perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> passa a ser coisificado. Em nome do gerente<br />

da <strong>em</strong>presa, a visita que o chefe lhe faz é um libelo acusatório contra supostos<br />

ilícitos fi<strong>na</strong>nceiros que ele teria praticado.<br />

Senhor Samsa bradou então o gerente, elevando a voz , o que<br />

está acontecendo? O senhor se entrincheira no seu quarto,<br />

respon<strong>de</strong> somente sim ou não, causa preocupações sérias e<br />

<strong>de</strong>snecessárias aos seus pais e <strong>de</strong>scura para mencio<strong>na</strong>r isso<br />

ape<strong>na</strong>s <strong>de</strong> passag<strong>em</strong> seus <strong>de</strong>veres funcio<strong>na</strong>is <strong>de</strong> uma maneira<br />

realmente i<strong>na</strong>udita. Falo aqui <strong>em</strong> nome dos seus pais e do seu chefe<br />

e peço­lhe com toda a serieda<strong>de</strong> uma explicação imediata e clara.<br />

Estou perplexo, estou perplexo. Acreditava conhecê­lo como um<br />

hom<strong>em</strong> calmo e sensato e agora o senhor parece querer <strong>de</strong> repente<br />

começar a ostentar estranhos caprichos. O chefe <strong>em</strong> verda<strong>de</strong> me<br />

insinuou esta manhã uma possível explicação para as suas<br />

omissões ele dizia respeito aos pagamentos à vista que<br />

recent<strong>em</strong>ente lhe foram confiados , mas eu quase <strong>em</strong>penhei<br />

minha palavra <strong>de</strong> honra no sentido <strong>de</strong> que esta explicação não podia<br />

estar certa. Porém, vendo agora sua incompreensível obsti<strong>na</strong>ção,<br />

perco completamente a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> interce<strong>de</strong>r o mínimo que seja<br />

pelo senhor (KAFKA: 1997, 19).<br />

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