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a consciência em crise na narrativa de clarice lispector

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Avenida Copacaba<strong>na</strong> tudo era possível: pessoas <strong>de</strong> toda a espécie.<br />

Pelo menos <strong>de</strong> espécie diferente da <strong>de</strong>la. ‘Da <strong>de</strong>la?’ ‘Que espécie<br />

<strong>de</strong> ela era para ser ‘da <strong>de</strong>la?’ (LISPECTOR: 1979, 135).<br />

Nesta sequência, a forma como o <strong>na</strong>rrador introduz o pedinte <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> do<br />

texto reveste­se <strong>de</strong> tanto preconceito quanto a reação <strong>de</strong> espanto da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong><br />

no momento <strong>em</strong> que é interpelada pelo hom<strong>em</strong>, como assi<strong>na</strong>la o <strong>na</strong>rrador, “s<strong>em</strong><br />

uma per<strong>na</strong> ...” Isso evi<strong>de</strong>ncia que a elaboração do discurso aqui é mais complexa.<br />

Os contextos situacio<strong>na</strong>is são diferentes. O imediato grito <strong>de</strong> socorro pronunciado<br />

pela protagonista não obe<strong>de</strong>ce à mesma conotação que se observa <strong>em</strong> ‘Socorre­<br />

me, Deus’. No primeiro momento, ela sente­se ameaçada, po<strong>de</strong>r­se­ia dizer até que<br />

hostilizada. Na situação seguinte, a sensação transmitida pela ento<strong>na</strong>ção da voz é<br />

<strong>de</strong> impotência diante do reconhecimento da miséria, algo que, supõe­se, ela jamais<br />

vira tão <strong>de</strong> perto. No mais, a fala fi<strong>na</strong>l da voz <strong>na</strong>rrante, ao traduzir <strong>em</strong> discurso direto<br />

a reação da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>, ape<strong>na</strong>s reafirma nossa posição anterior. Ou seja, a<br />

intencio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> mais que acintosamente preconceituosa <strong>de</strong> sua elocução. Reflita­<br />

se: Carla teria se preservado <strong>de</strong> tal vexame, o <strong>de</strong> <strong>de</strong>parar­se com ‘essa gente’ <br />

caso houvesse combi<strong>na</strong>do um horário com ‘seu’ José, o motorista particular. Na<br />

Avenida Copacaba<strong>na</strong>, o encontro com “pessoas <strong>de</strong> toda espécie” repare­se no<br />

tom classificatório era inevitável. Agora, a<strong>na</strong>lise­se a ambigüida<strong>de</strong> contida nessa<br />

fala ‘Da <strong>de</strong>la?’ ‘Que espécie <strong>de</strong> ela era para ser ‘da <strong>de</strong>la’?’. Essa postura do <strong>na</strong>rrador<br />

repete­se ao longo <strong>de</strong> todo o texto. Refletindo com Bakhtin:<br />

[...] A estrutura da socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> classes introduz nos gêneros do<br />

discurso e nos estilos uma extraordinária diferenciação que se opera<br />

<strong>de</strong> acordo com o título, a posição, a categoria, a importância<br />

conferida pela fortu<strong>na</strong> privada ou pela notorieda<strong>de</strong> pública, pela<br />

ida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sti<strong>na</strong>tário e, <strong>de</strong> modo correlato, <strong>de</strong> acordo com a<br />

situação do próprio locutor (ou escritor). [...] (BAKHTIN: 1992, 322).<br />

No meu entendimento, além <strong>de</strong> situá­lo numa posição <strong>de</strong> classe, refiro­me<br />

ao <strong>na</strong>rrador, isso acaba revelando a posição ambígua da classe domi<strong>na</strong>nte<br />

brasileira <strong>em</strong> relação aos margi<strong>na</strong>lizados da socieda<strong>de</strong>. Ou seja, às vezes mor<strong>de</strong>,<br />

outras vezes, sopra. É preferível instituir o jogo do faz <strong>de</strong> contas quando se trata <strong>de</strong><br />

encarar as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais <strong>de</strong> frente. Todos sab<strong>em</strong> que elas exist<strong>em</strong>, mas<br />

finge­se o contrário. Esta é, ao que me parece, a crítica subsumida no seguinte<br />

comentário do <strong>na</strong>rrador:<br />

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