a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
o máximo a que aspirava <strong>de</strong>sfrutar no refi<strong>na</strong>do ambiente do qual fazia parte, ela<br />
refletia:<br />
[...] Eu não me impunha um papel mas me organizara para ser<br />
compreendida por mim, não suportaria não me encontrar no<br />
catálogo. Minha pergunta, se havia, não era: ‘que sou’, mas entre<br />
quais eu sou. Meu ciclo era completo: o que eu vivia no presente já<br />
se condicio<strong>na</strong>va para que eu pu<strong>de</strong>sse posteriormente me enten<strong>de</strong>r.<br />
(LISPECTOR 1998: 28)<br />
Possivelmente, é <strong>na</strong> imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> sua cobertura resi<strong>de</strong>ncial esta que<br />
mais adiante será focalizada como o cenário <strong>de</strong> sua auto<strong>de</strong>scoberta on<strong>de</strong> ir<strong>em</strong>os<br />
encontrar a expressão mais b<strong>em</strong> acabada <strong>de</strong> um inconsciente fragmentado pela<br />
ilusão do fetiche da mercadoria:<br />
Da minha sala <strong>de</strong> jantar eu via as misturas <strong>de</strong> sombras que<br />
preludiavam o living. Tudo aqui é réplica elegante, irônica e<br />
espirituosa <strong>de</strong> uma vida que nunca existiu <strong>em</strong> parte alguma: minha<br />
casa é uma criação ape<strong>na</strong>s artística.<br />
Tudo aqui se refere <strong>na</strong> verda<strong>de</strong> a uma vida que se fosse real não<br />
me serviria. O que <strong>de</strong>calca ela, então? Real, eu não a enten<strong>de</strong>ria,<br />
mas gosto da duplicata e a entendo. A cópia é s<strong>em</strong>pre bonita. O<br />
ambiente <strong>de</strong> pessoas s<strong>em</strong>iartísticas e artísticas <strong>em</strong> que vivo<br />
<strong>de</strong>veria, no entanto, me fazer <strong>de</strong>svalorizar as cópias: mas s<strong>em</strong>pre<br />
pareci preferir a paródia, ela me servia (LISPECTOR: 1998, 30).<br />
Na <strong>de</strong>scrição que nos é proporcio<strong>na</strong>da pela <strong>na</strong>rradora, o apartamento<br />
agrega num único ambiente, po<strong>de</strong>r, riqueza, ostentação e, para não cometermos<br />
uma <strong>de</strong>sfaçatez com a mentalida<strong>de</strong> consumista da burguesia a qu<strong>em</strong> ela representa,<br />
a compulsivida<strong>de</strong> pelo ba<strong>na</strong>l, pelo que é <strong>de</strong>scartável. Não é sua intenção <strong>de</strong>screver<br />
a cobertura como um espaço <strong>em</strong> que a utilida<strong>de</strong> se imponha ao objeto do seu <strong>de</strong>sejo<br />
do seu status quo. Quer me parecer que o apartamento “reflete e refrata” a<br />
mentalida<strong>de</strong> reificada da protagonista. Nesta concepção, o apartamento é um<br />
ex<strong>em</strong>plo da “objetivação fantasmática” <strong>de</strong> que nos fala Lukács para se referir ao<br />
processo <strong>de</strong> reificação que se introjeta <strong>na</strong> <strong>consciência</strong> do hom<strong>em</strong>:<br />
A metamorfose da relação mercantil num objeto dotado <strong>de</strong> uma<br />
‘objetivação fantasmática’ não po<strong>de</strong>, portanto, limitarse à<br />
transformação <strong>em</strong> mercadoria <strong>de</strong> todos os objetos <strong>de</strong>sti<strong>na</strong>dos à<br />
satisfação das necessida<strong>de</strong>s. Ela imprime sua estrutura <strong>em</strong> toda a<br />
<strong>consciência</strong> do hom<strong>em</strong>; as proprieda<strong>de</strong>s e as faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ssa<br />
<strong>consciência</strong> não se ligam mais somente à unida<strong>de</strong> orgânica da<br />
pessoa, mas aparec<strong>em</strong> como ‘coisas’ que o hom<strong>em</strong> po<strong>de</strong> ‘possuir’<br />
53