a consciência em crise na narrativa de clarice lispector
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Como explicar esse “trânsito?” Como ress<strong>em</strong>antizar o significado <strong>de</strong>ssa<br />
combi<strong>na</strong>ção <strong>em</strong> que um el<strong>em</strong>ento profano interconectase <strong>na</strong> institucio<strong>na</strong>lizada<br />
convenção do sagrado para solaparlhe aquilo que sua mensag<strong>em</strong> promete como a<br />
mais inquestionável verda<strong>de</strong>, ou seja, o fato <strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> isentarse <strong>de</strong> seus<br />
pecados no ato da comunhão? Rel<strong>em</strong>brese que, ao matar a barata, a perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong><br />
interpretara sua atitu<strong>de</strong> como se tivesse praticado um crime contra si mesma. Veja<br />
se: “Já então eu talvez soubesse que não me referia ao que eu fizera à barata mas<br />
sim ao que fizera eu <strong>de</strong> mim?” (LISPECTOR:1998, 53). Novamente, <strong>de</strong>sdobrada <strong>em</strong><br />
outro contexto, a mesma fala se repete. Decidida, ela investe contra os restos<br />
agonizantes da barata:<br />
Avancei mais um passo. Mas <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> ir adiante, <strong>de</strong> repente<br />
vomitei o leite e o pão que havia comido <strong>de</strong> manhã ao café.<br />
Toda sacudida pelo vômito violento, que não fora sequer precedido<br />
pelo aviso <strong>de</strong> uma náusea, <strong>de</strong>siludida comigo mesma, espantada<br />
com minha falta <strong>de</strong> força <strong>de</strong> cumprir o gesto que me parecia ser o<br />
único a reunir meu corpo à minha alma.<br />
A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> mim, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vomitar, eu ficara sere<strong>na</strong>, com a testa<br />
refrescada, e fisicamente tranqüila.<br />
O que era pior: agora eu ia ter que comer a barata mas s<strong>em</strong> a ajuda<br />
da exaltação anterior, a exaltação que teria agido <strong>em</strong> mim como<br />
uma hipnose; eu havia vomitado a exaltação. E inesperadamente,<br />
<strong>de</strong>pois da revolução que é vomitar, eu me sentia fisicamente simples<br />
como uma meni<strong>na</strong>. Teria que ser assim, como uma meni<strong>na</strong> que<br />
estava s<strong>em</strong> querer alegre, que eu ia comer a massa da barata.<br />
Então avancei. [...] (LISPECTOR 1998:165166).<br />
Entretanto, percebo <strong>na</strong> elaboração <strong>de</strong>sse discurso uma referência<br />
sublimi<strong>na</strong>r ao próprio ato ficcio<strong>na</strong>l enquanto instância ruinosamente alegórica,<br />
compreen<strong>de</strong>ndose a “obra literária como a ruí<strong>na</strong> <strong>de</strong> algo que não houve” (KOTHE:<br />
1975, 30). Nessa perspectiva, o texto da autora é elaborado <strong>de</strong> forma a consi<strong>de</strong>rar a<br />
m<strong>em</strong>ória da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> como o espaço <strong>de</strong> representação <strong>de</strong> um conflito social<br />
cujas implicações com o dado <strong>em</strong>pírico se tor<strong>na</strong>m possíveis por meio do arcabouço<br />
da linguag<strong>em</strong> ficcio<strong>na</strong>l. É esta que nos possibilita perceber a <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong>sse<br />
“outro” como a figuração <strong>de</strong> um sujeito, cujo dil<strong>em</strong>a é conseqüência da percepção<br />
dos valores que lhe foram transmitidos pela cultura heg<strong>em</strong>ônica a que pertence. No<br />
cerne <strong>de</strong>ste probl<strong>em</strong>a, a <strong>crise</strong> vivenciada pela perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> revelarseá como a<br />
<strong>de</strong>scrença <strong>na</strong>quilo que ela instituíra como sendo sua verda<strong>de</strong>ira i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Daí que<br />
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