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a consciência em crise na narrativa de clarice lispector

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Esta ce<strong>na</strong> vai contribuir para operar uma reflexão <strong>de</strong> modo que nunca<br />

suce<strong>de</strong>ra acontecer no cotidiano da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>. A partir da visão que ela t<strong>em</strong> do<br />

cego, passa a estabelecer­se uma lógica por d<strong>em</strong>ais “contraditória”: A<strong>na</strong> se<br />

<strong>de</strong>scobre <strong>na</strong> condição do contrário do que ele é. Ou seja, <strong>na</strong> sua cegueira grotesca,<br />

ele enxerga melhor o mundo do que ela jamais imagi<strong>na</strong>ra que pu<strong>de</strong>sse acontecer. E<br />

mais: o hom<strong>em</strong>, que era privado da visão, costumava sorrir, era feliz. Quanto à<br />

perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>, esta s<strong>em</strong>pre vestira a imag<strong>em</strong> imposta pela socieda<strong>de</strong> da aparência.<br />

Assim, no seu processo <strong>de</strong> autoreconhecimento, no seu ritual <strong>de</strong> passag<strong>em</strong> o<br />

episódio faz l<strong>em</strong>brar a <strong>na</strong>rradora, G.H., todo o ódio que a perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> sentira pelo<br />

cego se dissipara. No percurso <strong>de</strong> volta ao apartamento, a perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> se dá conta<br />

<strong>de</strong> que alguma coisa <strong>em</strong> sua vida mudara:<br />

Ela apaziguara tão b<strong>em</strong> a vida, cuidara tanto para que esta não<br />

explodisse. Mantinha tudo <strong>em</strong> sere<strong>na</strong> compreensão, separava uma<br />

pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para ser<strong>em</strong><br />

usadas e podia­se escolher pelo jor<strong>na</strong>l o filme da noite tudo feito<br />

<strong>de</strong> modo <strong>de</strong> modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego<br />

mascando goma <strong>de</strong>spedaçava tudo isso. E através da pieda<strong>de</strong><br />

aparecia a A<strong>na</strong> uma vida cheia <strong>de</strong> náusea doce, até a boca.<br />

(LISPECTOR: 1983, 24)<br />

A<strong>na</strong> <strong>de</strong>scobrira que <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> sua vida <strong>de</strong> doméstica obediente aos<br />

preceitos da ord<strong>em</strong> positiva, que normatiza a instituição chamada família uma outra<br />

ord<strong>em</strong> se mantinha oculta, e ela sequer fora capaz <strong>de</strong> refletir sobre isso. O cego<br />

representa sua possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar contra o pensamento. De repensar o novo, a<br />

partir do s<strong>em</strong>pre igual, como <strong>em</strong> outros momentos <strong>de</strong>ste estudo já nos referimos. De<br />

repente, s<strong>em</strong> que percebesse, errara o caminho <strong>de</strong> casa e <strong>de</strong>scobriu que estava no<br />

Jardim Botânico. Atentando­se para esse <strong>de</strong>talhe, a textualida<strong>de</strong> da autora<br />

engendra, como s<strong>em</strong>pre, uma estratégia metafísica; um modo <strong>de</strong> criar uma<br />

argumentação paralela com o intuito <strong>de</strong>, falsamente, fazer o leitor acreditar que a<br />

proposta i<strong>de</strong>ológica do texto per<strong>de</strong>ra o seu significado. Ali, pensativa,<br />

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que<br />

apodrecia. Quando A<strong>na</strong> pensou que havia crianças e homens<br />

gran<strong>de</strong>s com fome, a náusea subiu­lhe à garganta, como se ela<br />

estivesse grávida e abando<strong>na</strong>da. A moral do Jardim era outra.<br />

Agora que o cego a guiara até ele, estr<strong>em</strong>ecia nos primeiros<br />

passos <strong>de</strong> um mundo faiscante, sombrio, on<strong>de</strong> vitórias­régias<br />

boiavam monstruosas. As peque<strong>na</strong>s flores espalhadas <strong>na</strong> relva<br />

não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor <strong>de</strong> mau ouro e<br />

escarlate. A <strong>de</strong>composição era profunda, perfumada... Mas todas<br />

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